domingo, 7 de dezembro de 2014

Quinta Dimensão


Hans Zimmer é um nome incontornável no universo dos compositores de bandas sonoras. Fã incondicional dos seus trabalhos, cativa-me a evolução que ele vai fazendo, obra atrás de obra, surpreendendo-me sempre. A última surpresa resulta da parceria feliz com o realizador Christopher Nolan, no filme Interstellar (ver mais em The Story Of How Hans Zimmer Wrote The Interstellar no Business Insider, a partir de um artigo do The Guardian, assinado por Tom Shone).

Já em Inception (do mesmo realizador), sobre o sonho dentro do sonho (e as dimensões do real), o Tempo teve direito a uma faixa, Time, na banda sonora, que inclui ainda uma versão mais alargada do tema. Em Interstellar, o Tempo é uma presença que vai sendo explorada ao longo de todo o filme e volta a merecer destaque numa das faixas, Afraid of Time.

Existir é um processo solitário, que ganha sentido quando é vivido através do olhar de um outro e na relação com ele, o que nos torna plenamente humanos. Finitos numa dimensão, infinitos numa outra: os sonhos e as singularidades de hoje transformam-se nas memórias futuras de nós, em outros, amanhã. No espaço intergaláctico e nos trilhos vivos do nosso ADN.

Tanto em Inception como em Interstellar, o dilema dos protagonistas só começa a deixar de o ser quando eles desafiam os limites do que concebem como possível ou real, saindo então do paradoxo. 
A parceria Zimmer-Nolan tem o mérito de veicular, na perfeição, esta possibilidade de conceber o impossível e mergulhar numa nova dimensão.


O poema de Dylan Thomas, Do Not Go Gentle Into That Good Night, pano de fundo do épico espacial Interstellar – e já não via um filme de ficção assim desde 2011 Odisseia no Espaço – transporta-nos para essa quinta dimensão, O que tiver de acontecer, acontecerá. Mas que não seja gentil e conformada (desesperançada, até) a longa viagem de uma estrela. Ou a evolução de uma espécie. 

Nem a curta jornada de um homem, que abre os olhos à luz sabendo que caminha para o sono e a escuridão. Sabendo também, e por fim, que a matéria não existe sem o coração dos buracos negros (a singularidade, assim se designa, na Física), onde o tempo do relógio para e o espaço deixa de existir. A quinta dimensão tem um som e Zimmer soube captá-lo.


domingo, 2 de novembro de 2014

Crescer no Ecrã



indiwire.com

Em Boyhood (Momentos de Uma Vida), acompanhamos a trajetória pessoal de um rapaz, desde a infância até ao final da adolescência e a evolução da sua relação com os pais.

Richard Linklater surpreende com esta ficção, escrita e filmada ao longo de 12 anos. «Entrar» no universo dos protagonistas e olhar o momento presente - pessoal e social - pelos olhos deles, é a grande valia da obra, premiada no festival de cinema de Berlim.



Cada momento, cada transição de vida, são oportunidades para revelar e atualizar a natureza e espessura dos vínculos, dos papeis, dos talentos e das vulnerabilidades de cada um.

Um filme sobre a continuidade humana - medos, frustrações, incertezas e sonhos - na descontinuidade dos dias. 

O trabalho dos atores e a banda sonora valem por si. «To be continued»,..

Estreia a 27 de novembro, nas salas de cinema portuguesas, Veja o Trailer

sábado, 1 de novembro de 2014

Sempre Ligados

Já não sabemos viver sem ele. O telemóvel revolucionou a nossa forma de estar e de ser. É uma extensão das nossas mãos, de nós. Comunicamos sem fronteiras mas distanciando-nos, do que, e de quem, está à nossa frente.
Habituámo-nos tanto a estar ligados a esse portal de acesso ao mundo que comprometemos a segurança na estrada e ficamos alterados, se privados do seu uso. Sabemos mesmo viver com ele?

No artigo que eu e Vânia Maia publicamos nesta edição da revista Visão vai ficar a conhecer o tipo de relação que estabelecemos com a tecnologia, saber mais sobre o phubbing (focar-se no telefone, ignorando pessoas com quem se está) e, ainda, a análise dos especialistas   

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O Self é acerca de Nós. O Nós são os Outros, com quem nos identificamos

Jesse Prinz é um neurofilósofo nova iorquino. Dá aulas inovadoras, com caráter essencialmente prático. Dedica-se a investigar o cérebro e escreve artigos científicos e livros acerca do que nos define enquanto humanos e os seus posts geram debate e controvérsia. E, espelhando a tradição familiar, ainda lhe sobra espaço para a veia artística, patente nos desenhos de cérebros humanos e de outros animais, que publica no seu site. A sua passagem por Lisboa foi o pretexto para uma conversa, para acompanhar, com texto, fotos e vídeo, no site da Revista Visão  


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Os ´novos filhos' de estimação


Os bichos estão a tornar-se, cada vez mais, 'parte da familia', com direitos e necessidades. Destacam-se nas nossas conversas quotidianas, em fotos e vídeos que se tornam virais, disputam lugar nos media e nas redes sociais. Os animais que habitam nas nossas casas têm registo de nascimento, cédula de saúde, constam cada vez mais nas opções estratégicas de espaços comerciais e estabelecimentos turísticos – vulgarizando o slogan «pet friendly» – e dispõem de uma oferta de produtos, acessórios, serviços clínicos e de estética praticamente tão sofisticados como os nossos.
Queremos dar-lhes o melhor pelo tempo de qualidade que passamos com eles, sem os encarar como animais para trabalho ou como simples objetos? Ou por lhes reconhecermos, na prática, o que a ciência agora confirma – a existência de substratos neurológicos que geram estados de consciência – e que Charles Darwin defendia há dois séculos?

Saiba mais nesta edição da Visão, já nas bancas.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O segredo para a crise está na comunidade




À conversa com Fernando Alves, em mais uma edição de Portugueses Excelentíssimos, na TSF, Moisés de Lemos Martins é um homem que merece a pena ouvir. O professor catedrático da Universidade do Minho e fundador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade tem uma firme convicção:
«O meu compromisso tem que estar com a comunidade. A comunidade é outra coisa que não a tribo. O tribalismo é um outro nome para o individualismo, 'sou eu e aqueles que são como eu'. A comunidade é outra coisa. É misturando o passado, o presente e o futuro de nós mesmos que fazemos a comunidade. A crise da comunidade é também a crise humana.» Ouvir a entrevista aqui

quinta-feira, 3 de julho de 2014

«O que conta é ter uma vida mais livre e autêntica»

(publicado na VISÃO 1110 de 12 de Junho)

 O psicanalista Carlo Strenger diz, em entrevista à VISÃO, que a existência só ganha sentido pela aceitação dos limites próprios e na gestão das crises, sem embarcar na ilusão da imortalidade.
Veja o Vídeo

É israelita. É psicanalista. E tem um cão chamado Freud. Um ano depois de ter lançado, em Portugal, O Medo da Insignificância (Ed. Lua de papel, 295pág., €14,90), que já vendeu três mil exemplares, o autor acolheu a VISÃO, via Skype, em Telavive, onde reside com a mulher, psicóloga política. Na sala de estar, com paredes «forradas» de livros, o professor universitário disserta sobre o impacto da globalização na identidade. O pânico existencial e o sentido da vida são temas de eleição nos seus livros, artigos e colunas publicadas na imprensa, mas também nas palestras internacionais (incluindo a famosa TEDxJaffa, sobre cidadania global, com mais de um milhão de visualizações). Aos 55 anos, define-se como um epicurista que não acredita em Deus. Prefere que o vejam como um liberal secular e tem fé na capacidade do Homo Globalis para cooperar e reduzir abismos forjados por visões do mundo fechadas, que não passam de «uma estratégia de defesa contra a consciência da morte.»

Começo por citá-lo: «Não existem garantias de que a nossa vida corra bem». Porque tememos a insignificância?
Os avanços tecnológicos levaram-nos a cultivar, erradamente, a noção de que temos controlo pleno das nossas vidas e do que acontece à nossa volta, mas continuamos a ser tão frágeis, talvez um pouco menos, do que éramos na Grécia Antiga. 

Isso quer dizer que a psicologia positiva tem os dias contados?
Não estou a questionar esse campo do saber, bem fundamentado cientificamente. Refiro-me à psicologia pop, que cria falsas esperanças com ideias simplistas e omnipotentes. Por exemplo, se acreditar em si, será rico, famoso e belo. Se tal não sucede, fica-se a pensar: «Algo profundamente errado está a passar-se comigo.»  

Alcançar o sucesso global é hoje um imperativo. Se não se for célebre, é-se um Zé Ninguém?
Isso acontece porque estamos numa cultura de informação-entretenimento, assente na tecnologia. Ela democratizou o conhecimento – basta pensar no Google – mas trouxe algum caos. Ficámos sem as referências que davam, até então, um valor às nossas vidas e substituímo-las pela fama: na música, no empreendedorismo, no futebol.

Confundimos o ter uma carreira com o ter uma vida com sentido?
A questão é que precisamos ter mais consciência da nossa mortalidade. Essa evidência torna-se clara quando atingimos a maturidade, mas pode acontecer antes. É o caso do jovem bem-sucedido, que tem o curso, o emprego de sonho, a casa e o carro, mas falta-lhe significado.

A sua carreira, por exemplo. Que significa para si e em que medida tem a ver consigo?
Encaro-a como uma espécie de chamamento. Sinto-me um sortudo por fazer algo que me apaixona. Uma das experiencias mais marcantes da minha vida foi ter crescido numa família judia ultra ortodoxa. Na adolescência comecei a ter sérias dúvidas acerca do judaísmo e da religião em geral. Tornei-me num secularista liberal, o que não foi nada fácil de aceitar para os meus pais. Inclusivamente, chegaram a não querer relacionar-se comigo. Isto mudou a minha vida de forma profunda, porque prezo muito a liberdade individual e de pensamento, bem como o uso da razão crítica. Tornou-se um tema central da minha vida pessoal e converti isso numa profissão.

Como define o significado existencial do Homo Globalis, ou cidadão do século XXI?
O que conta é que a pessoa consiga ter uma vida mais livre e autêntica. Há quem pense que a liberdade é ter tudo o que se quer. Para mim, é sobre o que é a essência humana, que implica escolhas difíceis. Por exemplo, a ideia de liberdade para conduzir uma certa forma de vida traduziu-se na escolha, minha e da minha mulher, de não sermos pais.

Defende que só podemos ser livres quando aceitamos os nossos limites. Porquê?
Refiro-me ao aceitar ativamente o que não somos, à tomada de consciência dos nossos limites, em vez de nos agarrarmos á ideia de que temos um potencial ilimitado, a lógica do «Just do it». Erradamente, pensa-se que o dinheiro, a fama e o poder trazem significado à existência, sem questionar se essa vida é, realmente, a nossa.

Esse dilema surge com frequência no seu consultório?
Sem dúvida. Quem chega ao topo não afasta de cena a procura de sentido. Perceber estes limites liberta-nos da ansiedade e da culpa pelas oportunidades perdidas na cultura orientada para o sucesso. Um dos meus pacientes acabou por enriquecer rapidamente e, quando acordava de manhã, pensava: «Conquistei tudo o queria… e agora? O que vou fazer?»

Como se faz esta mudança de paradigma ao nível coletivo?
É preciso algum treino para entender que a meta de um cidadão do mundo não é ser conhecido por todos, mas contribuir para um projeto que envolva a humanidade como um todo. Somos um sistema complexo e especializado, que pressupõe, para evoluir, cooperação e interdependência, para que todas as partes ganhem.

Defende que o desdém civilizado é preferível ao politicamente correto. Porquê?
Quando estava num programa de entrevistas sobre política na estação de radio mais ultra ortodoxa de Israel, houve um debate em que usei esse termo. Quando o tema é, por exemplo, a pena de morte ou os direitos dos homossexuais, faz para mim mais sentido discordar civilizadamente com alguém que respeito como ser humano, mas sem ter de fingir que não me incomodam as suas ideias, que vão contra os meus valores e consciência.

Como ex membro do Painel de Monitorização do Terrorismo na Federação Mundial de Cientistas (WFS), está otimista quanto ao fim do conflito israelo-palestiniano, entre outros?
Segundo a teoria dos jogos, trata-se de um jogo de soma zero: ambas as partes perdem. Estamos a assistir à batalha pela cultura dominante e não posso prever como vai acabar este confronto civilizacional. A primavera árabe converteu-se num caos e a luta entre sunitas e xiitas é dramática. Podiam ter ganhos mútuos – principio não zero, um conceito do meu colega Robert Wright – mas ficam reféns de sistemas de crenças irracionais. Para os cidadãos, é uma história de horror.







quinta-feira, 19 de junho de 2014

«A cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo»

A escritora e ensaísta americana Siri Hustvedt desafia-nos a mergulhar no fascinante mundo da complexidade humana, ambígua por natureza, sem medos nem barreiras, incluindo as de género VEJA O VÍDEO 

(texto publicado na VISÃO 1108, de 29 de maio 2014)

«Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates.» Palavras de Harriet Burden, a personagem central de Mundo Ardente (ed. Dom Quixote, 463 págs., €22,90). O sexto romance de Siri Hustvedt conduz os leitores ao universo de uma artista plástica que, menosprezada no meio intelectual nova-iorquino, põe em marcha um plano arrojado: oculta a identidade e esconde-se por detrás de três homens que assinam e expõem o seu trabalho, com o intuito de desmontar preconceitos vigentes.
Deixemos agora o alter ego da autora e passemos à própria, com quem a VISÃO conversou no Bairro Alto Hotel, em Lisboa. As calças de fazenda, os sapatos de salto raso e a ausência de acessórios conferem-lhe um estilo casual chic e realçam o seu porte alto, magro e, aparentemente, frágil. "Não quero que isto soe como banal, mas gosto muito de cá estar", admitiu, no final da entrevista.
Quando vem a Portugal, sente-se em casa (a última vez foi em novembro, para o Lisbon & Estoril Festival, acompanhada pelo marido, o escritor Paul Auster, e a filha, a cantora Sophie Auster): "Os portugueses têm bom coração, não são nervosos, desagradáveis e competitivos." 
Ao longo de 40 minutos e sem papas na língua, contou-nos o que pensa de mundos que conhece bem. Arte. Escrita. Neurociência. Psicanálise. Temas recorrentes nos seus livros, onde coabitam múltiplas vozes, de forma tão fluida quanto ambígua, por ser assim, acrescenta, "que tocamos a profundidade das coisas".

Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. É este o seu lema?
Quando escrevo, mergulho nas personagens e torno-me nos seus múltiplos eus. Associar um nome masculino a uma criação artística, realça-a. Se a autoria for feminina, denigre-a. Não tenho dúvidas de que isto existe e está longe de acabar. Numa assinatura, as iniciais são uma maneira de esbater o género.

As suas heroínas, ou alter egos, refletem isso?
Escrevi duas vezes como homem. No primeiro romance, Iris (anagrama de Siri) veste-se de homem, é a armadura dela. Em Elegia para um americano, Burton veste-se de mulher e o narrador descreve-o como um homem que está a voltar a si. Os meus livros estão cheios de transformismo (vestir-se como sendo do sexo oposto). Esta é a primeira vez que a história é contada através de vinte vozes.

As heroínas submissas continuam em alta. Basta lembrar o estrondoso sucesso de As Cinquenta Sombras de Grey.
[Altera a expressão e faz uma pausa, antes de responder] O sucesso dessa obra está além da minha compreensão! Neste livro quis criar uma personagem colossal. Um monstro, não no sentido de Frankenstein, antes alguém que não cabe em nenhuma categoria. Harriet (ou Harry) foi antecedida por Margaret Cavendish, a poetisa, encenadora e filósofa naturalista do século XVII, com quem a personagem se identifica, e que foi praticamente rejeitada no seu tempo.

Se vivesse noutro tempo, seria não um monstro mas uma bruxa destinada à fogueira.
No ensaio O Meu Pai/Eu Mesma menciono a relação entre a Bruxa e Joana d'Arc, feita pela antropóloga Mary Douglas. Há um momento [em O Mundo Ardente] em que Harriet diz: "Na vizinhança chamam-me bruxa. Eu aceito."

Lançou a sua obra no atelier de Joana Vasconcelos, o que vê na obra dela?
Gosto particularmente das peças em que usa o croché, muito feminino. Há muita coragem no que ela faz.

Teve um irmão imaginário e fantasiava ser rapaz. Ser mulher ainda é como usar corpete?
[Sorriso enigmático] Surpreende-me como é que a cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo, na vida pública, doméstica, emocional e pessoal. Não acredito na visão cartesiana, que separa corpo e mente.

Como lidou com isso, durante o longo processo de tratamento da enxaqueca e das convulsões com causa indefinida, após a morte do seu pai?
É um problema crónico que controlo relativamente bem. Aprendi exercícios de relaxamento profundo, para aliviar a dor. As auras são interessantes e não me importo de tê-las. Creio que o envelhecimento e as mudanças hormonais tiveram um efeito positivo nas dores de cabeça. Durante muito tempo eu fui controlada por convulsões, tive uns cinco episódios. A minha neurologista leu A Mulher Trémula ou Uma História dos Meus Nervos (não ficção, 2010), concorda comigo: os diagnósticos foram sempre ambíguos.

Ambiguidade é um termo presente em todas as suas obras. Que valor tem para si?
É o meu chamamento estético e intelectual. Acredito que a complexidade da natureza humana não cabe num único modelo teórico e situa-se em zonas focadas de ambiguidade. O mesmo problema é visto de múltiplas perspetivas e não há uma só resposta, é fascinante.

A psicanálise e a neurociência marcam presença constante no seu trabalho. Porquê?
Sempre me interessei por descobrir como é que as pessoas se tornam, a cada momento, naquilo que são e estes campos lidam com a expressão do Eu.

E consegue dar conta de tudo o que lê e investiga, sem se esgotar?
A memória guarda o que é emocionalmente significativo, por isso não esqueço. Consigo assimilar muita coisa e aprender bastante, porque tenho a sorte de poder passar a maior parte do meu tempo a escrever e a ler em casa. Faço-o durante seis horas e, depois de uma pausa, leio quatro horas à noite. Exercito o corpo quatro vezes por semana com um profissional, vou às compras, faço jardinagem.

"Só vemos a arte quando ela nos altera emocionalmente." Quer explicar?
Não existe uma definição consensual do que é a arte. Ela força o espetador, o leitor ou o ouvinte a reconhecer qualidades maravilhosas na existência mundana. É o caso da pintura de Vermeer, Leitora à Janela: sinto-me transportada. Ele tem a capacidade de tornar uma coisa banal numa realidade transcendente.
A arte é sempre uma dádiva e um diálogo.

Esse diálogo acontece na ficção? Ou fora dela?
Como não há soluções finais para as respostas que procuro, a melhor forma de fazê-lo é na ficção. Posso apresentar ideias, a várias vozes, encenar argumentos que não estão resolvidos. A Mulher Trémula, por exemplo, foi o veículo perfeito para expor a minha obsessão com o fisiológico e o mental. Começa por ser um alienígena e acaba como algo que me pertence, Os Meus Nervos. A jornada faz-se do distanciamento para a proximidade, pela biologia e ritmos do corpo, que se conjugam com a narrativa acerca deles.

Freud estava certo, pelo menos em parte, no seu Projeto [Para uma Psicologia Científica, 1895] da mente?
A teoria da mente que ele não conseguiu validar é hoje confirmada pela neurociência, mas a divisão entre o fisiológico e psicológico não é uma solução satisfatória. Os modelos da psiquiatria biológica têm um problema: não são dinâmicos, os sintomas são tratados com fármacos, sem terem em conta outras abordagens.

Dá aulas de escrita criativa e já o fez com doentes psiquiátricos. O que pode dizer sobre isso?
Fui professora voluntária durante quatro anos e agora, a convite de um amigo, psiquiatra e psicanalista, estou a fazer palestras em Mainz, na Alemanha, sobre o Eu escritor e o doente psiquiátrico. Os pacientes psicóticos têm dificuldades com a narrativa e, sem ter a pretensão de convertê-los em escritores, a ideia é codificar o uso da escrita com fins terapêuticos.

Como vivem dois escritores na mesma casa, com as personagens de ambos?
Temos esta família de seres ficcionais que partilham vidas. Eu e o Paul [Auster] sabemos o que se passa com cada um durante o dia. "Eu escrevi uma página hoje, tive um dia terrível." O outro diz: "Quando é assim, no dia seguinte é melhor." Fazemos isto há décadas e estamos a envelhecer juntos, agora que a nossa filha já tem o apartamento dela.

Mudou alguma coisa com a saída de Sophie?
Não houve propriamente um luto. Ela está bem e eu nunca fui mãe-galinha. A minha mãe também não era. Talvez tenha a ver com as nossas raízes escandinavas, a reserva e o respeito pela privacidade do outro.

O que significa a palavra "casa", para si?
É uma boa pergunta. Continuo a viver em Brooklyn, pelo menos enquanto conseguir subir e descer escadas. É o lugar onde vivo, trabalho e tenciono escrever os romances que tenho em mim.

E não se cansa desse processo?
A única coisa que me cansa e entedia é quando estou no aeroporto à espera das malas, porque não posso ler. Nunca me entedio com as minhas vozes.

Como Fernando Pessoa.
Sim, ele também as tinha, embora um pouco loucas! [Solta uma gargalhada]. Ele e Kierkegaard são exemplos dos múltiplos eus que temos e nos tornam outros.

Para muitos, isso é assustador.
Sim, é verdade, mas também é emocionante! Sem isso, e alguma fluidez interna, raramente se consegue tocar a profundidade das coisas.

BI. ESCRITORA E ENSAÍSTA

Com ascendência norueguesa, nasceu e cresceu nos Estados Unidos e vive em Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster: celebram 33 anos de casamento, em junho.
Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. 
Decidiu ser escritora aos 13 anos. Aos 59, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção, com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.
Esta área levou-a a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a participar em conferências sobre a consciência, como a realizada há três anos, em Berlim, ao lado do neurocientista António Damásio.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Siri Hustvedt. As suas histórias, ela própria.

     Foto: Gonçalo Rosa da Silva
Siri Hustvedt é uma escritora e ensaísta americana, de ascendência norueguesa, premiada na ficção e não ficção, apesar de ser conhecida, ainda, como «a mulher do escritor Paul Auster». De regresso a Portugal, para lançar o seu sexto livro de ficção, Mundo Ardente, ela explica porque é preciso quebrar barreiras - ideológicas, sociais e de género - para nos tornarmos naquilo que somos. Saiba mais na próxima edição da revista Visão. 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Segredos familiares

Se lhe pedissem, com uma câmara apontada, para contar a historia da sua vida, do principio ao fim, como seria?
Depois de ver o filme da canadiana Sarah Polley, Stories we tell, fiquei a pensar no assunto. A proposta era tentadora. Mais ainda, porque se refere à vida da autora que, aos 28 anos, ficou a saber que o seu pai não era o biológico. 



Desde criança, ela suspeitava que algo estava mal contado na sua família. Ou pouco claro, para não dizer difuso. Alguns anos depois, foi confrontada com os fantasmas que, secretamente, a perseguiam. A mãe morrera quando Sarah tinha 11 anos. A adolescência fora passada com o pai, depois de os irmãos mais velhos já não viverem em casa. Era uma relação invulgar, a deles, mas não sabiam o quanto se intensificaria, pela vida adulta. E como iria transformar, para sempre, o modo de se verem como uma família.  

Dizem que é quando se passa a trintão que certas fichas do passado começam a aparecer, como do nada, e a assombrar os dias. E se muitos se convencem de que há coisas que não devem ser remexidas, outros só conseguem continuar se mergulharem a fundo nas suas heranças familiares e forem ao encontro das suas raízes. Da sua verdade. Mas também da dos outros. 

Que força foi essa, tsunâmica, que a levou a viver para investigar e contar o que nunca fora dito, apenas subentendido e disfarçado? Ela, a única da fratria que «saiu misteriosamente ruiva», sendo esse um tema de família, convocou todos os protagonistas, após um laborioso trabalho de pesquisa pessoal, para que fossem a jogo num projeto arrojado: fazer a sua própria narrativa biográfica, na relação com uma mulher que os unia a todos, a mãe de Sarah. 



Não querendo ser uma «spoiler» (apesar de o filme ser datado de 2012), apenas quero dizer que o visionamento do documentário me deixou uma impressão que me é «familiar»: a realidade supera a ficção. Mesmo depois de tudo ter sido lembrado, contado, encenado e, também, imaginado, as heranças familiares permanecem um enigma da natureza humana, na sua expressão química (as leis da atração, a vida em dna) e alquímica (a singularidade, a interpretação, a emoção, as pontes que o amor tece, com toda a dor e alegria).

Coragem ou compulsão? Sadismo ou exercício de redenção? as perguntas referem-se ao posicionamento dos protagonistas e, em especial, a Polley e seus dois pais, sendo a mãe o vértice do triângulo. A sua morte e «ressurreição», no mundo dos vivos que se inscrevem na sua biografia (pelas vias do coração, da memória e da reconstrução da narrativa, que é caleidoscópica), abriu novos trilhos no universo pessoal e (in)transmissivel dos que a viveram. 

«Se for boa (uma história), queremos partilhá-la». Por mais que custem, os trabalhos de escavação (ou imersão nos segredos de família) valerem - para eles, e para mim - a pena. A capacidade de olhar, sem desviar os olhos, de abrir mão das defesas, expondo-as à luz (à câmara, ao microfone, em face a face com os que nos são íntimos) não é para todos. 

Prefiro interpretar este exercício como um ato de coragem, já que envolveu o risco de o psicodrama familiar acabar por deitá-los, a todos, por terra. Eventualmente, isso também terá acontecido, nas margens do rio (rodagem). Mas terá sido transcendido. 

«Accept the sentence» diz, perto do final, o homem introvertido que nos conduz na leitura da sua história (entrelaçada com todas as outras). Ele gostava de contemplar as moscas solitárias. Contrariamente a elas (que nunca saberão o que significa «o porquê» do que acontece no seu ciclo de vida) fala connosco e, mais importante que tudo, testemunha-se a si mesmo, de uma forma renovada. «I will continue». 

Quantos de nós seriamos capazes de sair inteiros de tamanha odisseia?

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Quem quer um terapeuta de «linha branca»?


Aprendi no jornalismo que de nada serve ser um bom profissional (e pessoa), se não se é lido, ouvido ou visto (por alguns, idealmente vários, e há quem só se contente com muitos). E na psicologia (saúde mental e psicoterapias)? Parece que sim, que esta máxima também se aplica. Sinto-me tentada a chamar-lhe «saída  à americana» (das politicas de austeridade /espetro do desemprego dos terapeutas). De acordo com um artigo publicado há ano e meio, no The New York Times, assinado por Lori Gottlieb, não ter uma marca no mercado livre pode ser uma falha irreparável. O artigo questiona o papel e o posicionamento dos psicólogos que, sem o guarda-chuva das seguradoras e dos sistemas públicos de saúde, se vêem forçados a adaptar-se às leis do marketing, se quiserem viver da profissão.

Até há uma década, pelo menos nos EUA, bastava um diploma e supervisão para exercer a clinica privada e construir uma carteira de clientes. Agora não. Segundo a APA, que representa o setor, as intervenções clínicas sofreram uma quebra na procura em cerca de 30%, num período de tempo de 11 anos (análise de dados até ao ano de 2008), na proporção inversa do que sucedeu na indústria farmacêutica. Se os comprimidos podem ser anunciados e ter gigantescas campanhas de marketing, o mesmo não se pode dizer das sessões de terapia. 
Quem procura ajuda para as suas questões mais privadas quer profissionalismo e confidencialidade. E publicidade (também popularidade e exposição), quererá? O artigo faz querer que sim. À luz da economia global, os terapeutas também são marcas e, como tal, não dispensam os serviços de consultores comerciais para se posicionarem no mercado de trabalho ou minimizarem o risco de ter o consultório às moscas. É que os psicoterapeutas generalistas já «não vendem», pelo menos sem um «sound byte» que apele à cura rápida em questões muito específicas.  

Num cenário de expansão de aplicações para dispositivos móveis, os terapeutas que querem viver do seu ofício terão de moldar-se às necessidades dos potenciais consumidores e oferecer /anunciar soluções rápidas para problemas, quase como os técnicos de uma oficina automóvel. Mais: o cartão-de-visita só tem a mesma função que tinha (antes da web 2.0) se for ancorado num site interactivo e com uma boa dose de exposição pessoal. A explicação de Alison Roth, consultora de sites de profissionais de ajuda, a este respeito é esclarecedora: «A relação terapêutica é uma experiência íntima. As pessoas precisam de conhecer aquele(a) com quem vão estar, quando teclam o nome no Google. Querem sentir uma ligação pessoal e imediata.» Querem saber um pouco da história de quem está do outro lado: se foi filho de um divórcio, se passou por um trauma, se tem uma doença crónica.
Que lugar ocupa a postura empática e o insight do paciente, nesta nova lógica (metodologia / paradigma)? «Mostrar (ou demonstrar?) o caminho», de forma persuasiva, será terapia? Ou Consultoria (mentoria)? Se o cartão de visita diz que é um «promotor da felicidade» - há uns anos atrás, seria rotulado como banha da cobra - o seu detentor terá mais gente a consultá-lo do que optar pelo descritivo «psicoterapeuta» - hoje associado a «processo que envolve tempo, esforço e lágrimas»


No final da prosa, fiquei ainda a saber que quem deseja navegar nos mares da saúde mental deverá criar a sua própria almofada de recursos complementares (lançamento de livros, eventos de divulgação, sessões de formação temáticas, dicas online) e, assim, manter – ou aumentar – o seu rendimento. Seja.
Adeus, «linha branca» (ou terapeuta «tela em branco» para o paciente projectar / e consciencializar, por essa via, as suas fantasias e conflitos e ensaiar, em terapia, um modo diferente de estar numa relação de proximidade com alguém).
O meio é a mensagem, como dizia Marshall McLuhan. Na hora de causar uma boa impressão (ou uma ligação simbiótica) junto do destinatário (e numa economia de escala), o embrulho é fundamental. Para quem entra na corrida da comunicação de marca, o «problema» é saber quando parar. Quanto ao ofício propriamente dito, correm os terapeutas o risco de perder-se, entre papéis e laços? 
  
  


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Do Divã para a Cidade


Psicólogo americano traz a Lisboa documentário sobre cenários de trauma. Seguir em frente sem ficar perdido nos escombros, em Detroit ou noutro lugar do planeta, só é possível quando se criam pontes entre o fim e o princípio

Como se superam experiências de desmoronamento, que abalam o sentido de permanência? Camuflar ou passar uma esponja nos sentimentos de dor, perda, nostalgia pelo que não vai voltar a ser como antes, impede a transição, o estar bem com o depois, sem resistir às mudanças. No próximo sábado, dia 12, no encontro anual da AP (Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica), dedicado ao trauma, o psicólogo e psicanalista americano Richard Raubolt vai partilhar histórias de reconstrução humana que, ao longo de 35 anos, foram tendo lugar no gabinete de consulta (narrativas terapêuticas em forma de livro, Cenários Psicanalíticos do Trauma, Coisas de Ler, €17) e, mais recentemente, na paisagem urbana. 

Richard vive em Grand Rapids, no Estado de Michigan, a duas horas e meia de Detroit, cidade que conheceu e com a qual se envolveu (ali passou os tempos de liceu e esteve nos motins de 1967). Confrontado com o impacto visual da cidade fantasma e as reportagens fotográficas de edifícios sem gente, Richard entendeu que era preciso levar o olhar terapêutico ao bairro, à periferia e dar a ver outras realidades. "Abordei residentes, artistas e activistas, nos mesmos moldes em que o faço em contexto clínico, para os protagonistas expressarem os sentimentos e as histórias por que passaram, e do que estão a fazer com isso."
Detroit: In Between é uma viagem de 34 minutos, com a voz e os rostos de seis pessoas que habitam - e intervêm - na cidade em transição. Os espaços renovam-se, ganham outras funcionalidades, sem abandonar as que as antecederam, ou melhor, reconhecendo-lhes valor. Como a casa cortada a meio por uma nova estrada em construção que, em vez de demolida, é parcialmente usada para iniciativas culturais. "Os rituais de luto individuais e a expressão criativa permitem criar algo intermédio, onde o velho e o novo possam coabitar", explica o terapeuta /realizador. "Eliminar ou negar o que foi traumático impede que a mudança aconteça, que tenha direito a um lugar."      
Os fantasmas do passado das vítimas representam assuntos não resolvidos e intergeracionais, que merecem, segundo o autor, uma abordagem terapêutica mais ampla, "que se guia menos pelas interpretações académicas e se aproxima mais do paciente, sem temer a intensidade emocional que isso envolve". Na sala de consulta e no tecido urbano: "Precisamos de entrar na cidade, vê-la a partir de dentro e usar as competências clínicas em projetos com um alcance direto, que tragam significado à vida das pessoas."
C.S.
(publicado no site da Visão, a 11.04.2013)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A importância da atenção II


No Clube de Inteligência Emocional na Escola - Aprender a Ser Feliz, desenvolvido pela professora Manuela Queirós, os participantes aprendem a desenvolver competências emocionais e fazem exercícios de consciência corporal.

A funcionar em 20 escolas públicas do País, este programa de «treino» é realizado em sessões semanais. A funcionar há quatro anos, realiza-se em sessões semanais. Para os filhos, mas também para os pais, estas sessões têm benefícios na promoção da auto estima e na regulação de emoções.

Nesta sessão, foi dado destaque ao tema da atenção, que o rendimento escolar não dispensa. A capacidade de foco, aliada à empatia, é decisiva para uma comunicação eficaz e revela-se útil na realização de tarefas que envolvem planeamento e cooperação.

Veja o vídeo: Clube de Inteligência Emocional para Pais e Filhos




quarta-feira, 2 de abril de 2014

Atenção!


«Está sempre distraído, pouco atento ao que se diz e mal se lembra do que deu nas aulas.» A queixa é comum a muitos encarregados de educação, também eles a braços com problemas de atenção («O que é que eu estava a dizer há pouco?» é a sequência provável de qualquer conversa, após mais uma notificação de mensagem no telemóvel). 

A dispersão mental é consequência natural – embora indesejada – das múltiplas exigências quotidianas (tecnológicas incluídas) ou a ponta do iceberg do grupo de perturbações do desenvolvimento, que vieram para ficar, como «marca de desadaptação» da espécie?



O tema mereceu a análise de especialistas e a visita a uma das escolas onde existe um clube de inteligência emocional para alunos e pais, iniciado há quatro anos e a que 20 escolas já aderiram. 

A Visão falou ainda, em exclusivo, com Daniel Goleman, sobre o seu novo livro, Foco

Para saber mais, leia o artigo desta edição, que lhe apresenta dicas para aliar a capacidade de foco à criatividade.



domingo, 30 de março de 2014

A Vida em Exame

Entrevista com Stephen Grosz, psicanalista americano

'A paranóia é uma defesa contra o sentimento de que ninguém pensa em nós'

Publicado na Revista Visão


Aos 60 anos, escreveu o seu primeiro livro e converteu-se num bestseller mundial, traduzido em mais de 19 línguas. O segredo está na forma de contar histórias, inspiradas nos seus casos clínicos

Nasceu e cresceu nos Estados Unidos mas escolheu a Europa para trabalhar e viver. O segundo de três irmãos, todos terapeutas, confessa-se apaixonado pela natureza humana. 
Casado e pai tardio, entendeu legar aos seus filhos, de sete e dez anos, as lições que aprendeu ao longo de mais de 50 mil horas de consultas. O timing não foi ao acaso: com a sua idade, o seu pai teve dois ataques cardíacos (a mãe morreu aos 64). 
"Estava na hora de partilhar as lições que aprendi". 
A vida em Exame(Temas e debates, €16,60, 240 págs.) é o relato de 31 momentos singulares na relação entre analisando e analista. Com artigos científicos e participações nos media (Granta incluída), Grosz apresenta-se ao mundo num estilo comparável ao dos grandes repórteres e contadores de histórias. 
Em entrevista exclusiva à VISÃO, ele partilha vislumbres de viagens em terras desconhecidas. As nossas e as dele, mediadas por um divã. Para, no final, chegarmos às nossas próprias conclusões 

O que o levou a transpor a experiência clínica de uma vida em 31 narrativas curtas?
Cresci numa família de contadores de histórias. Elas são a melhor maneira de comunicar uma verdade ou realidade psicológica. Na minha casa sempre se cultivou a curiosidade e o interesse genuíno pelas pessoas. Perceber como elas se tornam naquilo que são, a partir da experiência com elas, no aqui e no agora. Quis revisitar alguns estudos de caso que me permitissem ilustrar temas comuns a todos nós.

Não é comum um 'catedra' despojar-se dos termos técnicos, nem adotar um estilo literário.
Há uma tendência a trairmo-nos com o rótulo de especialistas. Por isso pus de lado o jargão especializado e abordei os problemas que encontrei - e procurei entender - através dos meus pacientes. Acredito que a psicanálise é uma forma de não saber. Só se sabe quando se faz o caminho em conjunto, com aquele que desconhecemos.

Afirma que podemos perder-nos nas nossas histórias pessoais. Porquê?  
A vida funciona assim. A todos sucede ficar num impasse com outros: o marido com a mulher, os pais com os filhos, o terapeuta com o paciente. E vice-versa. É a partir do impasse, do equívoco, que se pode estabelecer uma ponte e chegar à compreensão e aprendizagem mútua do que não se sabia até aí.

O que faz quando os pacientes lhe pedem para mudar, mas sem que nada altere as suas vidas?
Mudar implica deixar algo para trás. Ir para a escola, para o banco da universidade, iniciar uma profissão ou uma família, são etapas novas que nos retiram do conforto das anteriores. Ganhar o jogo implica sempre perder alguma coisa. Mas isso nem sempre é claro.

Num dos capítulos menciona a vantagem de nos sentirmos um pouco loucos, paranóicos até. 
A paranóia é uma defesa contra o sentimento de que ninguém pensa em nós. Por mais trágico que seja sentirmo-nos traídos, perseguidos ou não gostados, é sempre melhor do que a ideia de não estarmos no pensamento de alguém. Essa tendência evidencia-se à medida que se envelhece. Homens que foram poderosos e mulheres que foram bonitas ou com influência descobrem que o mundo os vota à indiferença.

Como interpreta a teoria da conspiração, tão enraizada na psique colectiva dos EUA?
Partilho a tese de um amigo meu, aqui do Reino Unido, [David Aaronovitch]. No livro Voodoo Histories, ele explica que as grandes conspirações modernas em torno de eventos dramáticos, como o 11 de Setembro ou o assassinato de JFK, são demasiado dolorosos e intoleráveis para serem admitidos, tal como aconteceram.

Por contraste, cultiva-se a imagem de estar sempre bem e em alta. O que acha disso?
Há uma diferença entre estar excitado e vivo. Na sociedade actual, espera-se que estejamos sempre alegres e a fazer muitas coisas, para não sermos vistos como tristes ou chatos. Ser pensativo é hoje sinónimo de estar deprimido. Tenho acompanhado pessoas, muitas delas jovens, que não conseguem sair da medicação, incapazes de sentir. De chorar. De tomar decisões. Parte do meu trabalho é acompanhá-las nesse processo, ajuda-las a viver como são, a sentirem-se vivos, presentes, merecedores de serem pensados.

Uma das críticas apontadas à psicanálise é ser um processo lento e dispendioso.   
Em Londres existem profissionais que fazem preços sociais a uma minoria dos seus pacientes. Reconheço que é pouco e há quem nunca chegue a considerar esta via. Por razões culturais, por não ter tempo, dinheiro ou ambos. O livro é, também, a pensar naqueles para quem a psicanálise não está acessível.

Nenhum dos seus pacientes se queixou de ter sido reconhecido no material que publica?
Não, porque os casos são alterados em pormenores identificáveis e costumo mostrá-los aos pacientes antes de publicar. Mesmo quando se trata de alguém que já morreu, a preservação da identidade e o sigilo são a regra.

Dada a sua fama, acompanha pessoas à distância?
Pontualmente, sim. Faço algumas consultas e supervisões por telefone e também já atendi no meu consultório alguns portugueses. Confesso que gostava de ir a Portugal, que associo a uma cultura de grandes contadores de histórias.

Que diferenças há entre um estudo de caso e a narrativa literária?
Há quem defenda que são registos distintos. Muita coisa mudou desde Freud, Klein e Winnicott, mas há algo que se mantém. Escrever é, essencialmente, editar, ter a capacidade de vislumbrar um instante e captar o essencial, tal como um jornalista faz. Este livro tem 50 mil palavras e chegou a ter 150 mil. O psicanalista entra numa viagem, como os antropologistas Levi Strauss e Margaret Mead, ou o grande repórter Ryszard Kapuscinski. O que une os grandes contadores de histórias é a partilha de uma verdade única, onde a vivência tem muita força.

Refere-se ao exercício de estar na pele do outro?
Exatamente. Por vezes, enquanto clínico, sinto que sou penetrado pelos outros, ou a penetrar neles. Sento-me a escrever uma experiência intensa que tive com alguém diferente. Descrevo o que testemunhei, os detalhes e emoções que captei, porque estive lá. O propósito é sempre o mesmo: Se o leitor tivesse lá estado, tiraria as mesmas conclusões que eu?

sexta-feira, 21 de março de 2014

Autónomos ou autómatos?


O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do futuro é que os homens se tornem autómatos.

A afirmação é da autoria de um psicanalista alemão que ficou famoso por obras como Escape From Freedom e Ter ou Ser. Erich Fromm não é do tempo da web 2.0.  Morreu em 1980 e, bons anos antes, intuiu o que a sociologia designa por «modernidade líquida», em que tudo é volátil e carece de consistência. 

A vida corre em cliques vários e parte do nosso tempo (e atenção) é passado a gerir logística.  Acordamos com gadgets, falamos e comemos com gadgets, socializamos (e até podemos mediar atividades intimas) com gadgets. Por fim, adormecemos ligados à tecnologia. A ela devemos a liberdade de circulação no mercado livre, a ela somos fiéis e, desamparados ficamos, se nos privarem dela.     



Há praticamente um século, Fromm descodificou o que hoje é bastante óbvio: temos necessidade de fugir da liberdade sempre que ela ameaça o nosso sentido de segurança. Mais depressa submetemos a nossa autonomia para decidir livremente a um Outro (organização, ideologia, etc) que nos proporcione um sentimento de conforto e proteção, mesmo que ilusórios. 


Na pós modernidade, global e tecnológica, o lema «para a vida» deixou de ter lugar. Empregos, ideologias, amigos e amores flutuam ao sabor dos mercados. Tudo o que TEMOS agora, pode esfumar-se no minuto seguinte. 

Estamos todos ligados, mas também mais isolados. SEREMOS mais livres, ou tornar-se-á insustentável tamanha leveza do SER?


sexta-feira, 7 de março de 2014

Quem sou Eu (na rede)?

Sexo – Entrevista 

Ana Cristina Santos*
Socióloga no Centro de Estudos Sociais (CES) da universidade de Coimbra



(foto: Elsa Almeida)  
«Não podemos ter vários compartimentos fechados à chave» 

Doutorada em estudos de género, a investigadora aceitou o convite da VISÃO e analisa as implicações da expansão das categorias de género para mais de 50, propostas pela maior rede social do mundo, o Facebook (FB). Será, também ela (ou ele? ou @?), o grande laboratório social que vai revolucionar, outra vez, as nossas vidas?
Clara Soares

A diversidade de género é uma realidade conhecida e aceite em Portugal?
A atribuição do género é feita com base numa avaliação genital e na socialização, numa lógica dicotómica. Não há uma tradição de questionamento, ele só acontece quando o género não coincide com o sexo biológico.

As categorias de género do FB expressam novos fenómenos sociais ou a consciência do que já existia?
Há mais noção de que o modelo dicotómico não conta a história toda. Foi usado pela medicina com o objetivo de classificar, conhecer e controlar a diversidade mas esta não se compadece com modelos restritos. Agora, assistimos à explosão pública do desconforto silenciado há décadas, sobretudo por movimentos sociais que dão voz a estas demandas. A diversidade sempre existiu, a visibilidade que assume é que é nova.  

Este elenco de categorias de género – mais de 50 – é credível?
As categorias não são mutuamente exclusivas. Uma pessoa que seja mulher transexual, pode situar-se na categoria MTF (male to female) mas também na Transgénero. Há algumas designações que já estão a entrar no léxico, como o Cisgénero, mas outras nem tanto, como o Neutrois (sem tradução para português). É uma área em constante expansão, com grande margem para a subjetividade. 

Sem haver uma intenção científica, qual o alcance da proposta do FB?
O elenco foi feito após auscultação de pessoas que trabalham nesta área. Questionar o pensamento dicotómico gera inquietação, que estas categorias visam colmatar, dando nome e legitimidade a realidades que existem, permitindo que as pessoas se vejam descritas como se auto percecionam. O que se passava até aqui era as pessoas encontrarem opções muito limitadas, e com as quais não se identificavam, quando preenchiam o seu perfil.  

Se a funcionalidade do FB chegar a Portugal, há maior risco de se criarem identidades fictícias (avatares)?
O que está pensado pelo FB é alargar a possibilidade de identificação fora do âmbito masculino v.s. feminino a outros países, trabalhando com pessoas noutros contextos geográficos. O pior que podia acontecer era importarmos um modelo globalizado sem levar em conta as geografias variáveis da sexualidade. Quanto às ficções identitárias, isso também acontece com o modelo dicotómico e são situações residuais.

Quais as implicações desta maior liberdade de escolha?
Não podemos ter vários compartimentos fechados à chave. Os seres humanos estão em construção e são sujeitos a múltiplas transformações ao longo da vida. Nascemos com um carimbo que nos é atribuído por outrem. À medida que vamos crescendo vamos construindo a nossa identidade sexual. Por muitas categorias que existam, não são imutáveis. Alargando categorias, alarga-se também a perceção social. As fronteiras ficam mais ténues e ainda bem que assim é. Essa liberdade deve ser aceite e respeitada.  

Ainda se confunde orientação sexual e identidade de género?
A orientação sexual refere-se à atracção, desejo e afetos, independentemente da identidade de género. Esta descreve a forma como cada pessoa se identifica: masculino, feminino, ambos, ou nem uma coisa nem outra. O género não é orientação sexual, descreve expectativas e papéis socialmente atribuídos à pessoa. É esperado, por exemplo, que as mulheres biológicas tenham menos força física que os homens biológicos. São ideias ancoradas em estereótipos, sem sustentação sólida.   

Se combinarmos as duas variáveis vamos ter muitos desfechos possíveis. É um problema?
Tudo isto se vai complexificar. Basta pensarmos que há pessoas que se definem como assexuais. Ou intersexo. São situações de grande vulnerabilidade para as crianças e famílias, que não sabem como lidar com isso. Há uma expectativa cultural, e médica também, no sentido de pressionar para uma decisão, sobre se a criança será construída como menino ou menina. O entendimento, a nível internacional, é que essa decisão não deve ser tomada, antes deixada para mais tarde, quando a pessoa já tiver uma noção sobre si. E poupá-la a situações de grande mal-estar, resultantes de intervenções não autorizadas sobre o seu corpo. Em Portugal, este assunto ainda é pouco discutido. 

E qual seria o nome próprio? Em Portugal não temos praticamente nomes neutros.
Temos leis muito estritas. Elas determinam que o nome não pode suscitar dúvidas em termos de género. Depois há a questão da língua: a inglesa presta-se mais essa neutralidade, mas a portuguesa é muito pouco inclusiva. Há um pensamento binário na língua, na liberdade de dar um nome a uma criança e no regime dominante de género, que se exerce com a cumplicidade das autoridades médicas, entre outras instituições.  

Como se muda esse cenário?
Começando por respeitar a dignidade humana: reportarmo-nos às pessoas pela forma como elas desejam ser designadas, sem entrar em juízos de valor. E assumir que a diversidade é uma mais-valia, um recurso que deve ser protegido, mais do que tolerado.

Há quem veja na proposta do FB uma estratégica dirigida aos jovens que, segundo um estudo, estariam a preterir esta rede em favor de outras. Quer comentar?
Esta é uma iniciativa meritória, sobretudo por permitir uma reflexão sobre algo que nunca é questionado. Basta pensar nos formulários preenchidos nas finanças, num consultório médico, que só têm duas opções e nem contemplam a possibilidade de «outros» [géneros]. À boleia do FB, há toda uma perplexidade que emerge: o que antes era considerado uma disforia de género, fica agora em pé de igualdade com outras categorias. O patamar que as torna equiparáveis é a auto identidade e isso tem um poder tremendo. Deixa de haver as legítimas e as outras. Simbolicamente, é um bom passo.


* coordenadora do projeto INTIMATE— Citizenship, Care and Choice: The Micropolitics of Intimacy in Southern Europe

Entrevista publicada na Visão online