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domingo, 30 de março de 2014

A Vida em Exame

Entrevista com Stephen Grosz, psicanalista americano

'A paranóia é uma defesa contra o sentimento de que ninguém pensa em nós'

Publicado na Revista Visão


Aos 60 anos, escreveu o seu primeiro livro e converteu-se num bestseller mundial, traduzido em mais de 19 línguas. O segredo está na forma de contar histórias, inspiradas nos seus casos clínicos

Nasceu e cresceu nos Estados Unidos mas escolheu a Europa para trabalhar e viver. O segundo de três irmãos, todos terapeutas, confessa-se apaixonado pela natureza humana. 
Casado e pai tardio, entendeu legar aos seus filhos, de sete e dez anos, as lições que aprendeu ao longo de mais de 50 mil horas de consultas. O timing não foi ao acaso: com a sua idade, o seu pai teve dois ataques cardíacos (a mãe morreu aos 64). 
"Estava na hora de partilhar as lições que aprendi". 
A vida em Exame(Temas e debates, €16,60, 240 págs.) é o relato de 31 momentos singulares na relação entre analisando e analista. Com artigos científicos e participações nos media (Granta incluída), Grosz apresenta-se ao mundo num estilo comparável ao dos grandes repórteres e contadores de histórias. 
Em entrevista exclusiva à VISÃO, ele partilha vislumbres de viagens em terras desconhecidas. As nossas e as dele, mediadas por um divã. Para, no final, chegarmos às nossas próprias conclusões 

O que o levou a transpor a experiência clínica de uma vida em 31 narrativas curtas?
Cresci numa família de contadores de histórias. Elas são a melhor maneira de comunicar uma verdade ou realidade psicológica. Na minha casa sempre se cultivou a curiosidade e o interesse genuíno pelas pessoas. Perceber como elas se tornam naquilo que são, a partir da experiência com elas, no aqui e no agora. Quis revisitar alguns estudos de caso que me permitissem ilustrar temas comuns a todos nós.

Não é comum um 'catedra' despojar-se dos termos técnicos, nem adotar um estilo literário.
Há uma tendência a trairmo-nos com o rótulo de especialistas. Por isso pus de lado o jargão especializado e abordei os problemas que encontrei - e procurei entender - através dos meus pacientes. Acredito que a psicanálise é uma forma de não saber. Só se sabe quando se faz o caminho em conjunto, com aquele que desconhecemos.

Afirma que podemos perder-nos nas nossas histórias pessoais. Porquê?  
A vida funciona assim. A todos sucede ficar num impasse com outros: o marido com a mulher, os pais com os filhos, o terapeuta com o paciente. E vice-versa. É a partir do impasse, do equívoco, que se pode estabelecer uma ponte e chegar à compreensão e aprendizagem mútua do que não se sabia até aí.

O que faz quando os pacientes lhe pedem para mudar, mas sem que nada altere as suas vidas?
Mudar implica deixar algo para trás. Ir para a escola, para o banco da universidade, iniciar uma profissão ou uma família, são etapas novas que nos retiram do conforto das anteriores. Ganhar o jogo implica sempre perder alguma coisa. Mas isso nem sempre é claro.

Num dos capítulos menciona a vantagem de nos sentirmos um pouco loucos, paranóicos até. 
A paranóia é uma defesa contra o sentimento de que ninguém pensa em nós. Por mais trágico que seja sentirmo-nos traídos, perseguidos ou não gostados, é sempre melhor do que a ideia de não estarmos no pensamento de alguém. Essa tendência evidencia-se à medida que se envelhece. Homens que foram poderosos e mulheres que foram bonitas ou com influência descobrem que o mundo os vota à indiferença.

Como interpreta a teoria da conspiração, tão enraizada na psique colectiva dos EUA?
Partilho a tese de um amigo meu, aqui do Reino Unido, [David Aaronovitch]. No livro Voodoo Histories, ele explica que as grandes conspirações modernas em torno de eventos dramáticos, como o 11 de Setembro ou o assassinato de JFK, são demasiado dolorosos e intoleráveis para serem admitidos, tal como aconteceram.

Por contraste, cultiva-se a imagem de estar sempre bem e em alta. O que acha disso?
Há uma diferença entre estar excitado e vivo. Na sociedade actual, espera-se que estejamos sempre alegres e a fazer muitas coisas, para não sermos vistos como tristes ou chatos. Ser pensativo é hoje sinónimo de estar deprimido. Tenho acompanhado pessoas, muitas delas jovens, que não conseguem sair da medicação, incapazes de sentir. De chorar. De tomar decisões. Parte do meu trabalho é acompanhá-las nesse processo, ajuda-las a viver como são, a sentirem-se vivos, presentes, merecedores de serem pensados.

Uma das críticas apontadas à psicanálise é ser um processo lento e dispendioso.   
Em Londres existem profissionais que fazem preços sociais a uma minoria dos seus pacientes. Reconheço que é pouco e há quem nunca chegue a considerar esta via. Por razões culturais, por não ter tempo, dinheiro ou ambos. O livro é, também, a pensar naqueles para quem a psicanálise não está acessível.

Nenhum dos seus pacientes se queixou de ter sido reconhecido no material que publica?
Não, porque os casos são alterados em pormenores identificáveis e costumo mostrá-los aos pacientes antes de publicar. Mesmo quando se trata de alguém que já morreu, a preservação da identidade e o sigilo são a regra.

Dada a sua fama, acompanha pessoas à distância?
Pontualmente, sim. Faço algumas consultas e supervisões por telefone e também já atendi no meu consultório alguns portugueses. Confesso que gostava de ir a Portugal, que associo a uma cultura de grandes contadores de histórias.

Que diferenças há entre um estudo de caso e a narrativa literária?
Há quem defenda que são registos distintos. Muita coisa mudou desde Freud, Klein e Winnicott, mas há algo que se mantém. Escrever é, essencialmente, editar, ter a capacidade de vislumbrar um instante e captar o essencial, tal como um jornalista faz. Este livro tem 50 mil palavras e chegou a ter 150 mil. O psicanalista entra numa viagem, como os antropologistas Levi Strauss e Margaret Mead, ou o grande repórter Ryszard Kapuscinski. O que une os grandes contadores de histórias é a partilha de uma verdade única, onde a vivência tem muita força.

Refere-se ao exercício de estar na pele do outro?
Exatamente. Por vezes, enquanto clínico, sinto que sou penetrado pelos outros, ou a penetrar neles. Sento-me a escrever uma experiência intensa que tive com alguém diferente. Descrevo o que testemunhei, os detalhes e emoções que captei, porque estive lá. O propósito é sempre o mesmo: Se o leitor tivesse lá estado, tiraria as mesmas conclusões que eu?

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Histórias que curam


O que fazer quando se recebe um diagnóstico «mau»? Como se lida com os efeitos devastadores de uma doença crónica? Que sentido dar a uma faceta pessoal não assumida?  Toda a experiência é válida, assim se consiga encontrar o fio à meada e tecer os contornos de uma jornada feita na primeira pessoa.

O rumo dado aos eventos parte, em última análise, da sua visão do real. Não raras vezes, é aí que se descobrem forças que se julgavam apenas dos outros, e permitem trilhar caminhos inexplorados, antes, durante e após processos difíceis.


Estudos realizados na universidade americana de Chicago demonstraram que as narrativas pessoais têm um forte potencial terapêutico. Aliadas à medicina, cada vez mais especializada, elas constituem um complemento essencial nos processos de recuperação e da gestão de doenças e, mesmo em fases terminais, têm o potencial de restituir a dignidade e a dimensão humana, subjectiva, que deve estar sempre presente nos processos de natureza física.

Sabia que…

… um «diário de bordo» é uma opção frequentemente usada para superar fases difíceis?

  • Não importa o grau de conhecimento que se tem do assunto, nem sequer as competências de escrita.
  • Registar no papel (ou no tablet) tudo o que se passa dentro e fora do corpo, num período de mudança, tem um poder catártico.
  • Contar o que vai dentro de si, sem julgamento prévio, confere a sensação de controlo, pelo menos em parte, durante um período de incerteza. 
  • Elaborar, ou dar um sentido mais profundo ao que está a passar pode traduzir-se em serenidade. Há quem prefira fazê-lo a solo, mas igualmente numa psicoterapia ou num grupo (presencial ou virtual). 
·      Vergonha, inadequação, medo e desespero são sentimentos que surgem – ou se intensificam – em momentos de sofrimento e de dor. Eles podem ser minimizados pela escrita guiada ou pela partilha de experiências, seja com um profissional de ajuda ou em grupos com problemas similares. Outra das vantagens da partilha é sentir-se acompanhado, ouvido e ter ao alcance a possibilidade de expandir, de forma criativa, a visão de si e das opções que se afiguram pertinentes numa dada etapa de vida.

O uso das narrativas biográficas tem-se revelado muito útil na formação de médicos e outros profissionais de saúde, especialmente os que trabalham em equipa e em ambientes tecnologicamente avançados (em que a componente subjectiva tende a ficar em segundo plano pela especialização e falta de tempo, dificultando a comunicação de diagnósticos, a adesão aos tratamentos e a colaboração do doente no processo clínico). Em Portugal já existem iniciativas deste género, como as conferências realizadas na Universidade de Lisboa (Centro de Estudos Anglísticos).

Viver para contar
O que as histórias pessoais podem fazer por si (e por quem as testemunha)
  • Fornecem informação útil: apreendemos melhor o que ouvimos directamente do que aquilo que lemos num folheto, que é desprovido do elemento emocional
  • Conferem apoio: saber que não se é o único a passar por uma situação complicada revela-se uma ajuda preciosa (num processo de decisão, num tratamento, na reabilitação ou no luto)
  • Estimulam a mudança de atitude: comprovar, in loco, como alguém foi capaz de deixar de fumar, de perder peso, superar uma quimioterapia ou um trauma, é uma fonte motivadora
  • Facilitam decisões: a comunicação entre prestadores de cuidados clínicos e de quem deles precisa estabelece-se numa base mais realista e com um maior grau de confiança
Ver mais em: Revista Máxima


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