quinta-feira, 3 de julho de 2014

«O que conta é ter uma vida mais livre e autêntica»

(publicado na VISÃO 1110 de 12 de Junho)

 O psicanalista Carlo Strenger diz, em entrevista à VISÃO, que a existência só ganha sentido pela aceitação dos limites próprios e na gestão das crises, sem embarcar na ilusão da imortalidade.
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É israelita. É psicanalista. E tem um cão chamado Freud. Um ano depois de ter lançado, em Portugal, O Medo da Insignificância (Ed. Lua de papel, 295pág., €14,90), que já vendeu três mil exemplares, o autor acolheu a VISÃO, via Skype, em Telavive, onde reside com a mulher, psicóloga política. Na sala de estar, com paredes «forradas» de livros, o professor universitário disserta sobre o impacto da globalização na identidade. O pânico existencial e o sentido da vida são temas de eleição nos seus livros, artigos e colunas publicadas na imprensa, mas também nas palestras internacionais (incluindo a famosa TEDxJaffa, sobre cidadania global, com mais de um milhão de visualizações). Aos 55 anos, define-se como um epicurista que não acredita em Deus. Prefere que o vejam como um liberal secular e tem fé na capacidade do Homo Globalis para cooperar e reduzir abismos forjados por visões do mundo fechadas, que não passam de «uma estratégia de defesa contra a consciência da morte.»

Começo por citá-lo: «Não existem garantias de que a nossa vida corra bem». Porque tememos a insignificância?
Os avanços tecnológicos levaram-nos a cultivar, erradamente, a noção de que temos controlo pleno das nossas vidas e do que acontece à nossa volta, mas continuamos a ser tão frágeis, talvez um pouco menos, do que éramos na Grécia Antiga. 

Isso quer dizer que a psicologia positiva tem os dias contados?
Não estou a questionar esse campo do saber, bem fundamentado cientificamente. Refiro-me à psicologia pop, que cria falsas esperanças com ideias simplistas e omnipotentes. Por exemplo, se acreditar em si, será rico, famoso e belo. Se tal não sucede, fica-se a pensar: «Algo profundamente errado está a passar-se comigo.»  

Alcançar o sucesso global é hoje um imperativo. Se não se for célebre, é-se um Zé Ninguém?
Isso acontece porque estamos numa cultura de informação-entretenimento, assente na tecnologia. Ela democratizou o conhecimento – basta pensar no Google – mas trouxe algum caos. Ficámos sem as referências que davam, até então, um valor às nossas vidas e substituímo-las pela fama: na música, no empreendedorismo, no futebol.

Confundimos o ter uma carreira com o ter uma vida com sentido?
A questão é que precisamos ter mais consciência da nossa mortalidade. Essa evidência torna-se clara quando atingimos a maturidade, mas pode acontecer antes. É o caso do jovem bem-sucedido, que tem o curso, o emprego de sonho, a casa e o carro, mas falta-lhe significado.

A sua carreira, por exemplo. Que significa para si e em que medida tem a ver consigo?
Encaro-a como uma espécie de chamamento. Sinto-me um sortudo por fazer algo que me apaixona. Uma das experiencias mais marcantes da minha vida foi ter crescido numa família judia ultra ortodoxa. Na adolescência comecei a ter sérias dúvidas acerca do judaísmo e da religião em geral. Tornei-me num secularista liberal, o que não foi nada fácil de aceitar para os meus pais. Inclusivamente, chegaram a não querer relacionar-se comigo. Isto mudou a minha vida de forma profunda, porque prezo muito a liberdade individual e de pensamento, bem como o uso da razão crítica. Tornou-se um tema central da minha vida pessoal e converti isso numa profissão.

Como define o significado existencial do Homo Globalis, ou cidadão do século XXI?
O que conta é que a pessoa consiga ter uma vida mais livre e autêntica. Há quem pense que a liberdade é ter tudo o que se quer. Para mim, é sobre o que é a essência humana, que implica escolhas difíceis. Por exemplo, a ideia de liberdade para conduzir uma certa forma de vida traduziu-se na escolha, minha e da minha mulher, de não sermos pais.

Defende que só podemos ser livres quando aceitamos os nossos limites. Porquê?
Refiro-me ao aceitar ativamente o que não somos, à tomada de consciência dos nossos limites, em vez de nos agarrarmos á ideia de que temos um potencial ilimitado, a lógica do «Just do it». Erradamente, pensa-se que o dinheiro, a fama e o poder trazem significado à existência, sem questionar se essa vida é, realmente, a nossa.

Esse dilema surge com frequência no seu consultório?
Sem dúvida. Quem chega ao topo não afasta de cena a procura de sentido. Perceber estes limites liberta-nos da ansiedade e da culpa pelas oportunidades perdidas na cultura orientada para o sucesso. Um dos meus pacientes acabou por enriquecer rapidamente e, quando acordava de manhã, pensava: «Conquistei tudo o queria… e agora? O que vou fazer?»

Como se faz esta mudança de paradigma ao nível coletivo?
É preciso algum treino para entender que a meta de um cidadão do mundo não é ser conhecido por todos, mas contribuir para um projeto que envolva a humanidade como um todo. Somos um sistema complexo e especializado, que pressupõe, para evoluir, cooperação e interdependência, para que todas as partes ganhem.

Defende que o desdém civilizado é preferível ao politicamente correto. Porquê?
Quando estava num programa de entrevistas sobre política na estação de radio mais ultra ortodoxa de Israel, houve um debate em que usei esse termo. Quando o tema é, por exemplo, a pena de morte ou os direitos dos homossexuais, faz para mim mais sentido discordar civilizadamente com alguém que respeito como ser humano, mas sem ter de fingir que não me incomodam as suas ideias, que vão contra os meus valores e consciência.

Como ex membro do Painel de Monitorização do Terrorismo na Federação Mundial de Cientistas (WFS), está otimista quanto ao fim do conflito israelo-palestiniano, entre outros?
Segundo a teoria dos jogos, trata-se de um jogo de soma zero: ambas as partes perdem. Estamos a assistir à batalha pela cultura dominante e não posso prever como vai acabar este confronto civilizacional. A primavera árabe converteu-se num caos e a luta entre sunitas e xiitas é dramática. Podiam ter ganhos mútuos – principio não zero, um conceito do meu colega Robert Wright – mas ficam reféns de sistemas de crenças irracionais. Para os cidadãos, é uma história de horror.







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