Encontrar significado para sintomas pouco comuns é um
exercício de descoberta pessoal, que a ciência só parcialmente explica e a
sociedade nem sempre aceita
Duas mulheres famosas, uma romancista e outra activista, entenderam
ter uma palavra a dizer sobre o que se passava no estranho mundo dos seus
corpos, aos quais «aconteciam coisas». Dessas, que as ciências médicas
diagnosticam e tratam, e de outras, menos óbvias. É humano: o sintoma tem
sempre razão. Descobri-la é outra história. A ser bem contada, pode acabar nas
páginas de um livro.
«Em Maio de 2006, sob um céu azul e sem nuvens, ali
estava eu [Minnesota, EUA] para discursar sobre o meu pai, que morrera dois
anos antes. Assim que abri a boca, comecei a tremer violentamente. Tremi nesse
dia e tremi outra vez, noutros dias. Eu sou a mulher que treme.» Assim termina
o ensaio The Shaking Woman or A History
of My Nerves (2010), da autoria da escritora americana Siri Hustved, companheira
do também escritor Paul Auster. A experiência, aos 51 anos, abalou-a
profundamente. Tudo correra bem na elegia fúnebre: «Quando chegou a hora, li o
que tinha preparado, numa voz forte, sem lágrimas.» Agora, diante de uma
plateia de convidados, no lugar onde o pai tinha sido professor universitário
durante quatro décadas, também conseguiu ler o discurso até ao fim, mas incapaz
de controlar o seu corpo a tremer, da zona do pescoço para baixo.
Durante dois anos, Siri dedicou-se, com afinco, à procura
da explicação para o «estranho» que habitava nela, qual «duplo», que podia
manifestar-se à revelia da sua vontade, do seu Eu. Procurou ajuda na medicina
convencional e complementou a sua investigação com memórias e episódios biográficos
marcantes.
A sensação de «ser outra» não era nova. A escritora
começou por aprender a falar norueguês, apesar de ter nascido em solo
americano. Uma de quatro irmãs, cresceu na companhia de um irmão imaginário,
chamado Erik, que viria a ter o papel de psicanalista, num romance seu. Com frequência,
tinha episódios de enxaqueca, ataques febris e perturbações sensoriais. Em adulta,
foi-lhe diagnosticada neuropatia periférica, comum em pacientes com enxaqueca. Siri
convivia relativamente bem com tudo isto. Até entrar em cena «A Mulher que
treme».
A hipótese de luto tardio estava fora de questão. Freud
poderia diagnosticar histeria (hoje, perturbação de conversão). O psiquiatra
equacionou uma desordem de pânico. O neurologista quis despistar a
possibilidade de epilepsia.
http://sirihustvedt.net/
57 anos, ascendência
norueguesa
Doutorada em literatura
inglesa, nos Estados Unidos
Romancista e ensaísta
Traduzida em 29 línguas,
recebeu vários prémios
Casada com o escritor Paul
Auster, a viver em Nova Iorque
Insight: «Ser doente depende do temperamento, história pessoal e
cultura em que vivemos»
As ressonâncias magnéticas que não acusaram nada. A
solução para manter os malditos «ataques» sob controlo era tomar medicamentos
beta-bloqueantes. A certa altura, a autora confessa ao leitor: «Fui seguida por
uma psicanalista e uma neurologista, mas nenhuma me disse quem era a mulher que
treme.»
Siri foi à procura dela. Frequentou, até, um grupo de
neuropsicanálise e conheceu as pesquisas sobre neurónios-espelho, responsáveis
pela empatia (sentir-se na pele do outro). Aí estaria, segundo ela, a chave do
enigma. Na última semana de vida do pai, Siri pensava nele, antes
de dormir, quando foi invadida pela sensação física de alguém com enfisema
pulmonar. «Como ele, senti a proximidade da morte.» O pai autorizara que ela
usasse memórias suas no livro As
Tristezas de um Americano (2008). A filha chegou a teclar cartas dele, combatente
na II Guerra, para interiorizar fisicamente o sentimento dos flashbacks descritos.
O envolvimento emocional intenso com a escrita paterna
pode ter estado na origem do «ataque». Quando ela se preparava para dar voz às
palavras, deu-lhes corpo. «A história da mulher que treme é a narrativa de um
evento que se repete e vai ganhando, ao longo do tempo, múltiplos sentidos, consoante
a perspectiva.» Podemos não controlar o que nos acontece, mas faz toda a
diferença ligar pontas soltas do «Eu» nessa história, e conta-la, de forma
articulada, a um «Tu».
Um dia, a mente deixa de responder ao que se passa no
corpo e tudo parece perdido. Ou ganho, depois de passar pela experiência, com
uma visão renovada. Para a activista política Naomi Wolf, autora do best seller
O Mito da Beleza, nos anos 90, o «click» deu-se aos 46 anos. «Enquanto fazia amor, e
nos momentos seguintes, deixei de sentir-me física e emocionalmente conectada
e, em vez disso, sentia uma dormência interna». Este foi o ponto de partida
para o seu novo livro, Vagina: A Cultural
History. Num artigo ao jornal britânico The
Sunday Times, Naomi afirmou que o seu problema foi uma oportunidade para
ganhar uma nova consciência sexual, com a ajuda clínica, mas não só.
A jornada começou no gabinete de ginecologia. Os testes
ditaram o diagnóstico: doença degenerativa na lombar, pela compressão vertebral
nos pontos L6 e S1. A lesão, originada por uma queda, duas décadas antes, nunca
tinha dado dores, até bloquear parte do nervo pélvico (que envia impulsos ao
cérebro, activando a química do prazer e do amor). Daí a dormência e falta
daquela euforia pós-sexo. A cirurgia era parte da solução. Na consulta com o
especialista Jeffrey Cole, Naomi ficou a conhecer algo novo: «Cada mulher tem
um nervo pélvico diferente; algumas ramificações centram-se mais na vagina,
outras no clítoris ou, ainda, no períneo, o que explica as diferenças
individuais da resposta sexual feminina.»
Sem estar à espera, Naomi encontrou a resposta para o
clássico drama da insatisfação feminina. Se as diferenças nas terminações
nervosas pélvicas são puramente físicas, deixa de haver discussão sobre
orgasmos de primeira e de segunda. O mistério está na anatomia e circuitos neurais
de cada mulher. Isto é algo que devem gostar de saber as 30% de mulheres
ocidentais que referem não ter prazer com o sexo. «Em vez de julgar-se ou
culpar-se por algo não funcionar consigo, explore as suas ligações neurais e deixe-se
guiar por elas.»
O prazer de fazer amor e o sentimento de êxtase 2-em-1, voltaram.
Depois do alinhamento das vértebras, Naomi recuperou, em alguns meses, a
sensibilidade que julgava perdida. Durante esse tempo, quis aprofundar o assunto
e frequentou os cursos de Mike Lousada, um terapeuta de sexo tântrico. «Os
tântricos abordam a sexualidade feminina com respeito, como se fosse sagrada», revelou
à imprensa. Na sua obra, disserta sobre o potencial do órgão sexual feminino, uma
porta de entrada para o autoconhecimento e a comunhão mística.
As críticas não se fizeram esperar. Numa edição do The Guardian, por exemplo, ironizava-se com
a mulher em crise da meia-idade que usava a
ciência a gosto, para legitimar questões de ego.
naomiwolf.org
50 anos, ascendência americana e romena
Formou-se em Artes e
Literatura Inglesa, nos Estados unidos
Autora, jornalista e defensora
da liderança e libertação sexual das mulheres
Foi consultora de Al Gore e
Bill Clinton nas suas campanhas presidenciais
Vive com o produtor de cinema
Avram Ludwig
Insight: «As mulheres americanas têm sido tão controladas por
ideais e estereótipos como por limitações materiais»
Naomi Wolf, a mulher que personificou o movimento
feminista de terceira geração, nunca escondeu as suas posições acerca do corpo,
da vida privada e das questões de consciência social, por mais controversas que
fossem. O gigante Apple também não escondeu que, em pleno século XXI, censura
palavras como a que titula o livro. Na sinopse pode ler-se: «V****a. Um
trabalho surpreendente que muda radicalmente a forma como pensamos acerca da
v****a». Ironicamente, o texto termina com a autora a interrogar «porque é que,
mesmo num mundo cada vez mais sexualizado, a v****a é vista como uma ameaça, ou
se pensa nela como algo ligeiramente vergonhoso».
Nas redes sociais, alguns dos comentários destacaram o paradoxo:
se é de um termo médico que estamos a falar, como querem, afinal, que lhe
chamemos?