domingo, 10 de março de 2013

Psicoterapia a nu


Na hora de procurar ajuda, saiba o que deve esperar de um profissional. A sua saúde mental agradece


4 «regras de ouro»:

Certificar-se das credenciais do terapeuta
Procurar referências do mesmo 
Indagar sobre o método usado e regras de funcionamento
Descubra se sente segurança e empatia na sessão


www.123rf.com

O que pode acontecer quando se tem a impressão de haver um clima erótico, numa sessão de terapia? A gestão da proximidade entre pacientes e profissionais de saúde mental é um tema atual que raramente se discute fora do âmbito da classe e da comunidade científica. As questões éticas agitaram a praça pública quando um prestigiado psicólogo americano, então colunista da Psychology Today, escreveu um texto polémico. Em Trabalhador sexual ou terapeuta?, Stanley Siegel defendeu que os objetivos e técnicas dos psicoterapeutas eram idênticos aos dos encontros com um(a) acompanhante: a experiência ocorria numa realidade suspensa e aí era possível existir empatia, compaixão, autoconhecimento e transformação pessoal, num tempo e espaço delimitados. A tese era para ser publicada na secção Intelligent Lust – a mais lida da revista – mas foi censurada e pode agora ser lida no novo projeto do ex colunista, ironicamente chamado Psychology Tomorrow. Para Stanley, a conjugação de conversa e sexo pode, em certos casos, solucionar problemas de autoestima, de ansiedade, inibição sexual e dificuldades em lidar com o corpo. Mas será mesmo assim? À luz dos códigos de ética internacionais, a resposta é não. 

A relação terapêutica obedece a um setting com regras próprias, em que o contacto físico não entra. A haver atração, ela deve ser descodificada nas consultas, em benefício do paciente, sem que o clínico aja como qualquer outra pessoa nessa situação (reforçando desse modo o problema que a pessoa traz). Ao agir as fantasias do paciente, o resultado pode ser contraproducente (ou não fosse por isso que as comédias acerca deste tema têm sucesso garantido, porque facilmente as reconhecemos, tanto quanto as tememos). Porém, a nível oficial, pouco ou nada se sabe acerca desta realidade escondida (o relatório que analisa as queixas dos utentes, da responsabilidade da Direção Geral de Saúde, não tem qualquer referência à área da saúde mental). Ténue é a linha que separa o próximo do demasiado próximo. A questão é saber como fazer quando isso sucede.
stanley-siegel.com

Maria (nome fictício) sofria de ansiedade social e tinha recorrido aos serviços de um terapeuta conhecido. Após três meses de sessões, deu por si a ficar impaciente pela sessão seguinte. «Chegava a ter consultas de quase duas horas, conversava ao telefone com ele e uma amiga alertou-me para o facto de isso ser, no mínimo, uma prática pouco ortodoxa.» No final de uma sessão, abordaram as dificuldades de relacionamento de Maria e ele despediu-se dela com um abraço e um beijo, acompanhado de carícias. «Fiquei desorientada, sem saber se devia ceder aos avanços, apesar de ter vontade.» Desde esse dia, nada voltou a ser como antes. «Comecei a sentir por ele tudo o que já havia experimentado em relacionamentos que acabaram mal.» Durante a pausa da terapia, para férias, Maria recorreu a outro profissional. Na terceira sessão conseguiu verbalizar o sucedido. Nunca mais voltou ao primeiro consultório nem fez queixa, «por sentir medo e culpa», que está a explorar agora, num novo contexto.
A confusão de fronteiras na dupla terapêutica tem feito correr muita tinta no meio das celebridades, cujas vidas são alvo do escrutínio público. Basta recuar um século para chegar à história de Sabina Spielrein, paciente de Carl Jung. O discípulo de Sigmund Freud sabia que estava a explorar terreno minado ao envolver-se sexualmente com Sabina, que veio a ser, igualmente, uma psicanalista famosa. O caso gerou polémica por ter sido violado o código de conduta, com consequências para os três visados, como o ilustrou, de resto, o cineasta Cronenberg, ao ficcionar a história, em Um Método Perigoso. Casos em que terapeutas menos avisados se renderam à sedução dos seus pacientes têm sido mais comuns do que o recomendável, pondo a nu as fragilidades humanas. Nos anos 30, a escritora Anais Nin, amiga e amante do seu psicanalista Otto Rank - outro dissidente de Freud – viria a descrever esse envolvimento num dos seus diários, admitindo publicamente o impacto que a experiência teve na sua vida, marcada pela relação incestuosa que tivera com o pai. Nos anos 60, foi a vez de Marilyn Monroe e Ralph Greenson. O médico abriu-lhe as portas da sua casa e apresentou-a a familiares e amigos, por entender que assim podia reparar os danos sofridos pela rapariga cuja infância fora passada em orfanatos e famílias de acolhimento. A morte da atriz, por overdose de barbitúricos, representou a travessia no deserto para Greenson. Um ano antes de morrer, redigiu o ensaio Problemas em psicoterapia com ricos e famosos, onde refletiu sobre os riscos de sucumbir ao poder sedutor dos pacientes, tomando como exemplo o caso «de uma actriz de 34 anos, bonita e famosa, com personalidade limite, aditiva e paranóide». 

Quase um século depois, a neutralidade do terapeuta é ponto assente, bem como a capacidade de lidar com a transferência (sentimentos e crenças do paciente que ele projeta no terapeuta). 
O clínico e o paciente não são amigos, não almoçam juntos e, excepto numa situação de emergência, não se contactam entre sessões. 

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Para a psiquiatra Ângela Pires, o profissional deve preservar a sua vida privada e manter-se firme e seguro para poder acompanhar a pessoa em tudo o que ela sente, da zanga e fúria à paixão. Aceitar a pessoa que ali está implica, no ambiente clínico, dominar a arte de gerir a distância. «Nem tão próximo que perca o foco, nem tão distante que não se deixe tocar pelo paciente.» Quanto a eventuais abusos, comentados em surdina, por parte de quem ajuda e de quem procura essa ajuda, a médica adverte: «O envolvimento erótico do terapeuta é muito semelhante ao incesto e traz danos, na medida em pressupõe que ele age por vaidade, questões de ego ou inexperiência, em vez de traduzir um desejo de intimidade do paciente, com bom senso e sem rejeitá-lo.»
O que fazer, então, perante uma situação menos ética? David Neto, da Ordem dos Psicólogos, recomenda: «Confrontar o profissional e esclarecer eventuais equívocos e, se for uma queixa com fundamento, apresentá-la à entidade que o tutela.»

Glen Gabbard é um psiquiatra americano, famoso por avaliar profissionais de ajuda (padres, médicos e psicoterapeutas) acusados de transgredir limites no exercício de funções. Numa entrevista recente ao site do British Psychoanalytic Council, o diretor da clínica Baylor, no estado do Texas, afirmou que todos os clínicos são vulneráveis a passar das marcas, mas apenas os que têm distúrbios da personalidade o fazem. E cita alguns exemplos de transgressões, com caráter perverso: «Tratam as pessoas como suas amigas, outras vezes convencem-nas de que estão apaixonadas por eles.» Valendo-se da sua autoridade, criam falsas esperanças em quem as procura para apoio especializado e exploram-nas, quando as deviam acompanhar e proteger. Em certos casos, essa faceta revela-se, paradoxalmente, uma virtude. Glen, também autor do bestseller Psychiatry and the Cinema, explica porquê: «O público adora o tipo de pessoa que faz algo radical para salvar o paciente, isso torna-o sedutor.»
Consciente disso, uma jovem americana lançou, há dois anos, o conceito Terapia a Nu. Apesar de não ser reconhecida no meio clínico, Sara White insiste que o seu método – despir-se online, enquanto o paciente vai dando curso livre as suas fantasias – está para o século XXI como a psicanálise o foi para o século XX. A jovem argumenta, no site, que os homens estão assustados com as mulheres, que tomaram de assalto o meio clínico, e que o meio virtual se lhes afigura apetecível para se exporem, sem toque nem inibições, mas com sexo à mistura. Poderá ser terapêutico para alguns, mas não é psicoterapia.

Texto publicado em Revista Máxima (Dez.2012)

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