domingo, 10 de março de 2013

O Meu Corpo e Eu


Encontrar significado para sintomas pouco comuns é um exercício de descoberta pessoal, que a ciência só parcialmente explica e a sociedade nem sempre aceita

Duas mulheres famosas, uma romancista e outra activista, entenderam ter uma palavra a dizer sobre o que se passava no estranho mundo dos seus corpos, aos quais «aconteciam coisas». Dessas, que as ciências médicas diagnosticam e tratam, e de outras, menos óbvias. É humano: o sintoma tem sempre razão. Descobri-la é outra história. A ser bem contada, pode acabar nas páginas de um livro.    
«Em Maio de 2006, sob um céu azul e sem nuvens, ali estava eu [Minnesota, EUA] para discursar sobre o meu pai, que morrera dois anos antes. Assim que abri a boca, comecei a tremer violentamente. Tremi nesse dia e tremi outra vez, noutros dias. Eu sou a mulher que treme.» Assim termina o ensaio The Shaking Woman or A History of My Nerves (2010), da autoria da escritora americana Siri Hustved, companheira do também escritor Paul Auster. A experiência, aos 51 anos, abalou-a profundamente. Tudo correra bem na elegia fúnebre: «Quando chegou a hora, li o que tinha preparado, numa voz forte, sem lágrimas.» Agora, diante de uma plateia de convidados, no lugar onde o pai tinha sido professor universitário durante quatro décadas, também conseguiu ler o discurso até ao fim, mas incapaz de controlar o seu corpo a tremer, da zona do pescoço para baixo.
Durante dois anos, Siri dedicou-se, com afinco, à procura da explicação para o «estranho» que habitava nela, qual «duplo», que podia manifestar-se à revelia da sua vontade, do seu Eu. Procurou ajuda na medicina convencional e complementou a sua investigação com memórias e episódios biográficos marcantes.

 A sensação de «ser outra» não era nova. A escritora começou por aprender a falar norueguês, apesar de ter nascido em solo americano. Uma de quatro irmãs, cresceu na companhia de um irmão imaginário, chamado Erik, que viria a ter o papel de psicanalista, num romance seu. Com frequência, tinha episódios de enxaqueca, ataques febris e perturbações sensoriais. Em adulta, foi-lhe diagnosticada neuropatia periférica, comum em pacientes com enxaqueca. Siri convivia relativamente bem com tudo isto. Até entrar em cena «A Mulher que treme».
A hipótese de luto tardio estava fora de questão. Freud poderia diagnosticar histeria (hoje, perturbação de conversão). O psiquiatra equacionou uma desordem de pânico. O neurologista quis despistar a possibilidade de epilepsia. 
http://sirihustvedt.net/

57 anos, ascendência norueguesa
Doutorada em literatura inglesa, nos Estados Unidos
Romancista e ensaísta
Traduzida em 29 línguas, recebeu vários prémios
Casada com o escritor Paul Auster, a viver em Nova Iorque
Insight: «Ser doente depende do temperamento, história pessoal e cultura em que vivemos» 



As ressonâncias magnéticas que não acusaram nada. A solução para manter os malditos «ataques» sob controlo era tomar medicamentos beta-bloqueantes. A certa altura, a autora confessa ao leitor: «Fui seguida por uma psicanalista e uma neurologista, mas nenhuma me disse quem era a mulher que treme.»
Siri foi à procura dela. Frequentou, até, um grupo de neuropsicanálise e conheceu as pesquisas sobre neurónios-espelho, responsáveis pela empatia (sentir-se na pele do outro). Aí estaria, segundo ela, a chave do enigma. Na última semana de vida do pai, Siri pensava nele, antes de dormir, quando foi invadida pela sensação física de alguém com enfisema pulmonar. «Como ele, senti a proximidade da morte.» O pai autorizara que ela usasse memórias suas no livro As Tristezas de um Americano (2008). A filha chegou a teclar cartas dele, combatente na II Guerra, para interiorizar fisicamente o sentimento dos flashbacks descritos.
O envolvimento emocional intenso com a escrita paterna pode ter estado na origem do «ataque». Quando ela se preparava para dar voz às palavras, deu-lhes corpo. «A história da mulher que treme é a narrativa de um evento que se repete e vai ganhando, ao longo do tempo, múltiplos sentidos, consoante a perspectiva.» Podemos não controlar o que nos acontece, mas faz toda a diferença ligar pontas soltas do «Eu» nessa história, e conta-la, de forma articulada, a um «Tu». 

Um dia, a mente deixa de responder ao que se passa no corpo e tudo parece perdido. Ou ganho, depois de passar pela experiência, com uma visão renovada. Para a activista política Naomi Wolf, autora do best seller O Mito da Beleza, nos anos 90, o «click» deu-se aos 46 anos. «Enquanto fazia amor, e nos momentos seguintes, deixei de sentir-me física e emocionalmente conectada e, em vez disso, sentia uma dormência interna». Este foi o ponto de partida para o seu novo livro, Vagina: A Cultural History. Num artigo ao jornal britânico The Sunday Times, Naomi afirmou que o seu problema foi uma oportunidade para ganhar uma nova consciência sexual, com a ajuda clínica, mas não só.   
A jornada começou no gabinete de ginecologia. Os testes ditaram o diagnóstico: doença degenerativa na lombar, pela compressão vertebral nos pontos L6 e S1. A lesão, originada por uma queda, duas décadas antes, nunca tinha dado dores, até bloquear parte do nervo pélvico (que envia impulsos ao cérebro, activando a química do prazer e do amor). Daí a dormência e falta daquela euforia pós-sexo. A cirurgia era parte da solução. Na consulta com o especialista Jeffrey Cole, Naomi ficou a conhecer algo novo: «Cada mulher tem um nervo pélvico diferente; algumas ramificações centram-se mais na vagina, outras no clítoris ou, ainda, no períneo, o que explica as diferenças individuais da resposta sexual feminina.»
Sem estar à espera, Naomi encontrou a resposta para o clássico drama da insatisfação feminina. Se as diferenças nas terminações nervosas pélvicas são puramente físicas, deixa de haver discussão sobre orgasmos de primeira e de segunda. O mistério está na anatomia e circuitos neurais de cada mulher. Isto é algo que devem gostar de saber as 30% de mulheres ocidentais que referem não ter prazer com o sexo. «Em vez de julgar-se ou culpar-se por algo não funcionar consigo, explore as suas ligações neurais e deixe-se guiar por elas.»

O prazer de fazer amor e o sentimento de êxtase 2-em-1, voltaram. Depois do alinhamento das vértebras, Naomi recuperou, em alguns meses, a sensibilidade que julgava perdida. Durante esse tempo, quis aprofundar o assunto e frequentou os cursos de Mike Lousada, um terapeuta de sexo tântrico. «Os tântricos abordam a sexualidade feminina com respeito, como se fosse sagrada», revelou à imprensa. Na sua obra, disserta sobre o potencial do órgão sexual feminino, uma porta de entrada para o autoconhecimento e a comunhão mística.  
As críticas não se fizeram esperar. Numa edição do The Guardian, por exemplo, ironizava-se com a mulher em crise da meia-idade que usava a ciência a gosto, para legitimar questões de ego.
naomiwolf.org

50 anos, ascendência americana e romena
Formou-se em Artes e Literatura Inglesa, nos Estados unidos
Autora, jornalista e defensora da liderança e libertação sexual das mulheres
Foi consultora de Al Gore e Bill Clinton nas suas campanhas presidenciais 
Vive com o produtor de cinema Avram Ludwig
Insight: «As mulheres americanas têm sido tão controladas por ideais e estereótipos como por limitações materiais»


Naomi Wolf, a mulher que personificou o movimento feminista de terceira geração, nunca escondeu as suas posições acerca do corpo, da vida privada e das questões de consciência social, por mais controversas que fossem. O gigante Apple também não escondeu que, em pleno século XXI, censura palavras como a que titula o livro. Na sinopse pode ler-se: «V****a. Um trabalho surpreendente que muda radicalmente a forma como pensamos acerca da v****a». Ironicamente, o texto termina com a autora a interrogar «porque é que, mesmo num mundo cada vez mais sexualizado, a v****a é vista como uma ameaça, ou se pensa nela como algo ligeiramente vergonhoso».
Nas redes sociais, alguns dos comentários destacaram o paradoxo: se é de um termo médico que estamos a falar, como querem, afinal, que lhe chamemos?  

Texto publicado na Revista Máxima (Fev 2013)




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