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terça-feira, 10 de maio de 2016

VIII Encontro Anual da AP - O Estranho

O auditório do CHPL encheu. O Tempo - para uns, o mestre que ensina pela prátic, para outros um conceito abstrato - pareceu claramente pouco face ao tanto para dizer, o muito para escutar e outro tanto para partilhar. 
Foi um prazer ter colaborado na organização deste evento e, mais ainda, ter acesso a múltiplas abordagens de um tema que sempre cativou desde criança e, ainda hoje, me parece fundamental, em tempos de globalização e de standardização. É na abertura ao diferente e ao que nos é estranho, ou estranhamente familiar, para usar a terminologia freudiana, que residem as sementes da mudança, do crescimento e da evolução criativa. 
 




quinta-feira, 19 de junho de 2014

«A cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo»

A escritora e ensaísta americana Siri Hustvedt desafia-nos a mergulhar no fascinante mundo da complexidade humana, ambígua por natureza, sem medos nem barreiras, incluindo as de género VEJA O VÍDEO 

(texto publicado na VISÃO 1108, de 29 de maio 2014)

«Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates.» Palavras de Harriet Burden, a personagem central de Mundo Ardente (ed. Dom Quixote, 463 págs., €22,90). O sexto romance de Siri Hustvedt conduz os leitores ao universo de uma artista plástica que, menosprezada no meio intelectual nova-iorquino, põe em marcha um plano arrojado: oculta a identidade e esconde-se por detrás de três homens que assinam e expõem o seu trabalho, com o intuito de desmontar preconceitos vigentes.
Deixemos agora o alter ego da autora e passemos à própria, com quem a VISÃO conversou no Bairro Alto Hotel, em Lisboa. As calças de fazenda, os sapatos de salto raso e a ausência de acessórios conferem-lhe um estilo casual chic e realçam o seu porte alto, magro e, aparentemente, frágil. "Não quero que isto soe como banal, mas gosto muito de cá estar", admitiu, no final da entrevista.
Quando vem a Portugal, sente-se em casa (a última vez foi em novembro, para o Lisbon & Estoril Festival, acompanhada pelo marido, o escritor Paul Auster, e a filha, a cantora Sophie Auster): "Os portugueses têm bom coração, não são nervosos, desagradáveis e competitivos." 
Ao longo de 40 minutos e sem papas na língua, contou-nos o que pensa de mundos que conhece bem. Arte. Escrita. Neurociência. Psicanálise. Temas recorrentes nos seus livros, onde coabitam múltiplas vozes, de forma tão fluida quanto ambígua, por ser assim, acrescenta, "que tocamos a profundidade das coisas".

Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. É este o seu lema?
Quando escrevo, mergulho nas personagens e torno-me nos seus múltiplos eus. Associar um nome masculino a uma criação artística, realça-a. Se a autoria for feminina, denigre-a. Não tenho dúvidas de que isto existe e está longe de acabar. Numa assinatura, as iniciais são uma maneira de esbater o género.

As suas heroínas, ou alter egos, refletem isso?
Escrevi duas vezes como homem. No primeiro romance, Iris (anagrama de Siri) veste-se de homem, é a armadura dela. Em Elegia para um americano, Burton veste-se de mulher e o narrador descreve-o como um homem que está a voltar a si. Os meus livros estão cheios de transformismo (vestir-se como sendo do sexo oposto). Esta é a primeira vez que a história é contada através de vinte vozes.

As heroínas submissas continuam em alta. Basta lembrar o estrondoso sucesso de As Cinquenta Sombras de Grey.
[Altera a expressão e faz uma pausa, antes de responder] O sucesso dessa obra está além da minha compreensão! Neste livro quis criar uma personagem colossal. Um monstro, não no sentido de Frankenstein, antes alguém que não cabe em nenhuma categoria. Harriet (ou Harry) foi antecedida por Margaret Cavendish, a poetisa, encenadora e filósofa naturalista do século XVII, com quem a personagem se identifica, e que foi praticamente rejeitada no seu tempo.

Se vivesse noutro tempo, seria não um monstro mas uma bruxa destinada à fogueira.
No ensaio O Meu Pai/Eu Mesma menciono a relação entre a Bruxa e Joana d'Arc, feita pela antropóloga Mary Douglas. Há um momento [em O Mundo Ardente] em que Harriet diz: "Na vizinhança chamam-me bruxa. Eu aceito."

Lançou a sua obra no atelier de Joana Vasconcelos, o que vê na obra dela?
Gosto particularmente das peças em que usa o croché, muito feminino. Há muita coragem no que ela faz.

Teve um irmão imaginário e fantasiava ser rapaz. Ser mulher ainda é como usar corpete?
[Sorriso enigmático] Surpreende-me como é que a cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo, na vida pública, doméstica, emocional e pessoal. Não acredito na visão cartesiana, que separa corpo e mente.

Como lidou com isso, durante o longo processo de tratamento da enxaqueca e das convulsões com causa indefinida, após a morte do seu pai?
É um problema crónico que controlo relativamente bem. Aprendi exercícios de relaxamento profundo, para aliviar a dor. As auras são interessantes e não me importo de tê-las. Creio que o envelhecimento e as mudanças hormonais tiveram um efeito positivo nas dores de cabeça. Durante muito tempo eu fui controlada por convulsões, tive uns cinco episódios. A minha neurologista leu A Mulher Trémula ou Uma História dos Meus Nervos (não ficção, 2010), concorda comigo: os diagnósticos foram sempre ambíguos.

Ambiguidade é um termo presente em todas as suas obras. Que valor tem para si?
É o meu chamamento estético e intelectual. Acredito que a complexidade da natureza humana não cabe num único modelo teórico e situa-se em zonas focadas de ambiguidade. O mesmo problema é visto de múltiplas perspetivas e não há uma só resposta, é fascinante.

A psicanálise e a neurociência marcam presença constante no seu trabalho. Porquê?
Sempre me interessei por descobrir como é que as pessoas se tornam, a cada momento, naquilo que são e estes campos lidam com a expressão do Eu.

E consegue dar conta de tudo o que lê e investiga, sem se esgotar?
A memória guarda o que é emocionalmente significativo, por isso não esqueço. Consigo assimilar muita coisa e aprender bastante, porque tenho a sorte de poder passar a maior parte do meu tempo a escrever e a ler em casa. Faço-o durante seis horas e, depois de uma pausa, leio quatro horas à noite. Exercito o corpo quatro vezes por semana com um profissional, vou às compras, faço jardinagem.

"Só vemos a arte quando ela nos altera emocionalmente." Quer explicar?
Não existe uma definição consensual do que é a arte. Ela força o espetador, o leitor ou o ouvinte a reconhecer qualidades maravilhosas na existência mundana. É o caso da pintura de Vermeer, Leitora à Janela: sinto-me transportada. Ele tem a capacidade de tornar uma coisa banal numa realidade transcendente.
A arte é sempre uma dádiva e um diálogo.

Esse diálogo acontece na ficção? Ou fora dela?
Como não há soluções finais para as respostas que procuro, a melhor forma de fazê-lo é na ficção. Posso apresentar ideias, a várias vozes, encenar argumentos que não estão resolvidos. A Mulher Trémula, por exemplo, foi o veículo perfeito para expor a minha obsessão com o fisiológico e o mental. Começa por ser um alienígena e acaba como algo que me pertence, Os Meus Nervos. A jornada faz-se do distanciamento para a proximidade, pela biologia e ritmos do corpo, que se conjugam com a narrativa acerca deles.

Freud estava certo, pelo menos em parte, no seu Projeto [Para uma Psicologia Científica, 1895] da mente?
A teoria da mente que ele não conseguiu validar é hoje confirmada pela neurociência, mas a divisão entre o fisiológico e psicológico não é uma solução satisfatória. Os modelos da psiquiatria biológica têm um problema: não são dinâmicos, os sintomas são tratados com fármacos, sem terem em conta outras abordagens.

Dá aulas de escrita criativa e já o fez com doentes psiquiátricos. O que pode dizer sobre isso?
Fui professora voluntária durante quatro anos e agora, a convite de um amigo, psiquiatra e psicanalista, estou a fazer palestras em Mainz, na Alemanha, sobre o Eu escritor e o doente psiquiátrico. Os pacientes psicóticos têm dificuldades com a narrativa e, sem ter a pretensão de convertê-los em escritores, a ideia é codificar o uso da escrita com fins terapêuticos.

Como vivem dois escritores na mesma casa, com as personagens de ambos?
Temos esta família de seres ficcionais que partilham vidas. Eu e o Paul [Auster] sabemos o que se passa com cada um durante o dia. "Eu escrevi uma página hoje, tive um dia terrível." O outro diz: "Quando é assim, no dia seguinte é melhor." Fazemos isto há décadas e estamos a envelhecer juntos, agora que a nossa filha já tem o apartamento dela.

Mudou alguma coisa com a saída de Sophie?
Não houve propriamente um luto. Ela está bem e eu nunca fui mãe-galinha. A minha mãe também não era. Talvez tenha a ver com as nossas raízes escandinavas, a reserva e o respeito pela privacidade do outro.

O que significa a palavra "casa", para si?
É uma boa pergunta. Continuo a viver em Brooklyn, pelo menos enquanto conseguir subir e descer escadas. É o lugar onde vivo, trabalho e tenciono escrever os romances que tenho em mim.

E não se cansa desse processo?
A única coisa que me cansa e entedia é quando estou no aeroporto à espera das malas, porque não posso ler. Nunca me entedio com as minhas vozes.

Como Fernando Pessoa.
Sim, ele também as tinha, embora um pouco loucas! [Solta uma gargalhada]. Ele e Kierkegaard são exemplos dos múltiplos eus que temos e nos tornam outros.

Para muitos, isso é assustador.
Sim, é verdade, mas também é emocionante! Sem isso, e alguma fluidez interna, raramente se consegue tocar a profundidade das coisas.

BI. ESCRITORA E ENSAÍSTA

Com ascendência norueguesa, nasceu e cresceu nos Estados Unidos e vive em Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster: celebram 33 anos de casamento, em junho.
Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. 
Decidiu ser escritora aos 13 anos. Aos 59, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção, com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.
Esta área levou-a a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a participar em conferências sobre a consciência, como a realizada há três anos, em Berlim, ao lado do neurocientista António Damásio.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Psicologia Quotidiana

«Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos». 

Annais Nin ficou célebre por estar à frente do seu tempo. Mais do que o estilo inovador da sua escrita erótica, ou a intensidade que acompanhou sempre a sua vida amorosa, no meio literário parisiense (ilustrada na obra, Henri, June and Me, adaptada ao cinema), cativam-me as suas reflexões, o que ela filtrava das experiências quotidianas. Os dias contados à luz da qualidade (e riqueza) singular dessas experiências. A sua marca de água reside na espontaneidade, na intenção e nos afetos.

Nessa altura, ainda não existia a neurociência. A psicanálise sim,  e foi um veiculo precioso, afirmou ela, mais tarde, para o seu desenvolvimento pessoal e, consequentemente, para a criatividade e originalidade da sua escrita. 



De Freud até hoje, algumas coisas mudaram. O foco das investigações na área da psicologia e outras ciências deslocou-se do Inconsciente - que se enraizou e vulgarizou no senso comum - para a Consciência. Para o que se passa num momento presente (em '3D' ou '4G', poder-se-ia dizer, na gíria tecnológica). É um território com várias dimensões ou camadas (e em combinações neuronais quase infinitas), não confinada ao plano intrapsíquico. 

O passado, no sentido psicanalítico, atualiza-se no presente. E o que se passa no momento presente? Quanto dura um momento de experiência significativa, vivido com atenção focada e capaz de mudar o rumo de uma vida em escassos segundos? O que faz acontecer essas «explosões» químicas nos circuitos cerebrais? Como se processam os movimentos das interações (com um outro ou durante uma atividade)? Que leitura se vai fazendo delas, em tempo real? 

A investigação neste domínio (Experience Flutuaction Model) sugere que existe um estado de consciência descrito por experiência ótima (ou de 'fluxo'), caracterizado pela sintonia entre desejos, sentimentos e ação, na relação com o mundo.  Esse estado de consciência (gratificante e pleno) produz elevados níveis de bem-estar psicológico (Nakamura & Csikszentmihalyi, 2002) e pode ser alcançado pelo envolvimento e concentração no que se está a viver enquanto se interage, num dado momento e circunstância.

No meio de tantos gestos e rotinas, aparentemente insignificantes, faz-se um 'click'. Num instante, tudo muda. O significado da experiência subjetiva que emerge nos contextos naturais de vida é que vai determinar os pontos de viragem e transformação. As pesquisas centram-se agora nas flutuações da qualidade das experiências vividas, na tomada de consciência do que nos faz sentir vivos (presentes/conscientes) na relação com o mundo. Entrar em 'fluxo' e promovê-lo, numa perspetiva salutogénica.





mindfulyou.com

No seu tempo, Freud marcou a diferença e deixou um legado revolucionário: a ele se deve o foco no mundo mental e suas «prisões», que estão na base do sintoma. Não é por acaso que uma das suas obras mais icónicas seja A Psicopatologia da Vida Quotidiana. Hoje, a Bíblia das Perturbações Mentais (DSM) continua a ser revista (e a incluir sempre novas «disfunções», para as quais haverá uma nova molécula para prescrever), quase sem reservar espaço para aquilo que chamamos «normalidade»: o ser humano, nas suas singularidades e diversidade. 

Um novo paradigma começa a ganhar forma (ou massa crítica): se é em (na) relação que a «doença» (ou o sintoma) se forja, é em (na) relação que ela se pode «curar». Com outros protagonistas, ou em contextos relacionais mais user friendly (como acontece, por exemplo, num processo psicoterapêutico, mas também noutras formas de envolvimento significativas, onde têm lugar todas as formas de arte e de encontro, onde a empatia e o sentido de si têm lugar para existir).

As plataformas tecnológicas parecem ter um papel decisivo neste processo, por serem pontos de partida e criarem oportunidades (mesmo que temporárias ou experimentais) de contacto, descoberta e, eventualmente, de encontro, promotor de mudança (pela qualidade das experiências ótimas, que promovem «insight» e valem por si). 

Annais iria gostar de saber. 

Psicologia Quotidiana 
No Consultório Social da Visão Solidária, tem um espaço para colocar as suas perguntas (visaosolidaria@impresa.pte acompanhar as respostas.