Faltava algum tempo para a meia-noite. A noite estava
fria e chovia. Na rua, o vaivém dos veículos com ocupantes apressados. Em casa,
as horas eram saboreadas devagar. O felino ronronava, junto ao aquecedor,
enquanto a voz sussurrada de Sam Beam (Iron & Wine)* se fazia ouvir na
sala, com volume baixo. Ela deixou-se embalar até ao último acorde e
deliciou-se, de seguida, com os trilhos fluidos e imprevisíveis das gotas de
água na vidraça.
Ele veio da cozinha com um jarro de vinho e duas
canecas de barro e estendeu-lhe uma. Brindaram então aos momentos que marcaram
o ano: os bons, os assim-assim e os outros, sem os quais não teria sido
possível mudar de rumo e, vendo agora, talvez para melhor.
«O 13 não chegou a ser um 31, mas por vezes pareceu!»,
brincou ela.
«Eu não te dizia que com jeitinho e paciência tudo
acaba por compor-se, no tempo certo?», acrescentou ele. Ela levantou-se do
sofá. «E qual é o tempo certo? Essa é a pergunta que vale milhões!»
O som do relógio de cuco trouxe um toque de suspense
ao momento. O jogo da bisca ainda não tinha acabado. O homem pousou na mesa as
três cartas que tinha na mão, naipes voltados para baixo e, em tom de fado, entoou
a ladainha:
«O tempo
pergunta ao tempo, quanto tempo o tempo tem...»
Ela sorriu. E vai de acompanhá-lo,
à desgarrada: «...O tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo, quanto
tempo o tempo tem.» Bateram palmas e retomaram o jogo, perdendo-se nas horas. Há
momentos de sorte. Ou presentes de graça. Foi então que os ponteiros do relógio
de cuco se cruzaram, no sentido norte. Abraçaram-se. Estava frio e chovia. Eram os primeiros
acordes de 2014.
*God, give us love in the time that we have
Primeira ficção do ano, em memória do meu pai, que partiu há 4 décadas e com quem aprendi as artes do tempo (e não apenas da relojoaria e do ouro) .
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