quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Our endless numbered days

Faltava algum tempo para a meia-noite. A noite estava fria e chovia. Na rua, o vaivém dos veículos com ocupantes apressados. Em casa, as horas eram saboreadas devagar. O felino ronronava, junto ao aquecedor, enquanto a voz sussurrada de Sam Beam (Iron & Wine)* se fazia ouvir na sala, com volume baixo. Ela deixou-se embalar até ao último acorde e deliciou-se, de seguida, com os trilhos fluidos e imprevisíveis das gotas de água na vidraça.

Ele veio da cozinha com um jarro de vinho e duas canecas de barro e estendeu-lhe uma. Brindaram então aos momentos que marcaram o ano: os bons, os assim-assim e os outros, sem os quais não teria sido possível mudar de rumo e, vendo agora, talvez para melhor. 
«O 13 não chegou a ser um 31, mas por vezes pareceu!», brincou ela. 
«Eu não te dizia que com jeitinho e paciência tudo acaba por compor-se, no tempo certo?», acrescentou ele. Ela levantou-se do sofá. «E qual é o tempo certo? Essa é a pergunta que vale milhões!»

O som do relógio de cuco trouxe um toque de suspense ao momento. O jogo da bisca ainda não tinha acabado. O homem pousou na mesa as três cartas que tinha na mão, naipes voltados para baixo e, em tom de fado, entoou a ladainha: 
«O tempo pergunta ao tempo, quanto tempo o tempo tem...»  
Ela sorriu. E vai de acompanhá-lo, à desgarrada: «...O tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem.» Bateram palmas e retomaram o jogo, perdendo-se nas horas. Há momentos de sorte. Ou presentes de graça. Foi então que os ponteiros do relógio de cuco se cruzaram, no sentido norte. Abraçaram-se. Estava frio e chovia. Eram os primeiros acordes de 2014.  
*God, give us love in the time that we have

Primeira ficção do ano, em memória do meu pai, que partiu há 4 décadas e com quem aprendi as artes do tempo (e não apenas da relojoaria e do ouro) .




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