Sexo –
Entrevista
Ana Cristina
Santos*
Socióloga no
Centro de Estudos Sociais (CES) da universidade de Coimbra
(foto: Elsa
Almeida)
«Não podemos
ter vários compartimentos fechados à chave»
Doutorada em estudos de género, a investigadora aceitou o convite da VISÃO e
analisa as implicações da expansão das categorias de género para mais de 50,
propostas pela maior rede social do mundo, o Facebook (FB). Será, também ela
(ou ele? ou @?), o grande laboratório social que vai revolucionar, outra vez,
as nossas vidas?
Clara Soares
A
diversidade de género é uma realidade conhecida e aceite em Portugal?
A atribuição
do género é feita com base numa avaliação genital e na socialização, numa
lógica dicotómica. Não há uma tradição de questionamento, ele só acontece
quando o género não coincide com o sexo biológico.
As categorias
de género do FB expressam novos fenómenos sociais ou a consciência do que já
existia?
Há mais
noção de que o modelo dicotómico não conta a história toda. Foi usado pela
medicina com o objetivo de classificar, conhecer e controlar a diversidade mas
esta não se compadece com modelos restritos. Agora, assistimos à explosão
pública do desconforto silenciado há décadas, sobretudo por movimentos sociais
que dão voz a estas demandas. A diversidade sempre existiu, a visibilidade que
assume é que é nova.
Este elenco
de categorias de género – mais de 50 – é credível?
As categorias
não são mutuamente exclusivas. Uma pessoa que seja mulher transexual, pode
situar-se na categoria MTF (male to female) mas também na Transgénero. Há
algumas designações que já estão a entrar no léxico, como o Cisgénero, mas
outras nem tanto, como o Neutrois (sem tradução para português). É uma área em
constante expansão, com grande margem para a subjetividade.
Sem haver
uma intenção científica, qual o alcance da proposta do FB?
O elenco foi
feito após auscultação de pessoas que trabalham nesta área. Questionar o
pensamento dicotómico gera inquietação, que estas categorias visam colmatar,
dando nome e legitimidade a realidades que existem, permitindo que as pessoas
se vejam descritas como se auto percecionam. O que se passava até aqui era as
pessoas encontrarem opções muito limitadas, e com as quais não se
identificavam, quando preenchiam o seu perfil.
Se a
funcionalidade do FB chegar a Portugal, há maior risco de se criarem identidades
fictícias (avatares)?
O que está
pensado pelo FB é alargar a possibilidade de identificação fora do âmbito
masculino v.s. feminino a outros países, trabalhando com pessoas noutros
contextos geográficos. O pior que podia acontecer era importarmos um modelo
globalizado sem levar em conta as geografias variáveis da sexualidade. Quanto
às ficções identitárias, isso também acontece com o modelo dicotómico e são
situações residuais.
Quais as
implicações desta maior liberdade de escolha?
Não podemos
ter vários compartimentos fechados à chave. Os seres humanos estão em
construção e são sujeitos a múltiplas transformações ao longo da vida. Nascemos
com um carimbo que nos é atribuído por outrem. À medida que vamos crescendo
vamos construindo a nossa identidade sexual. Por muitas categorias que existam,
não são imutáveis. Alargando categorias, alarga-se também a perceção social. As
fronteiras ficam mais ténues e ainda bem que assim é. Essa liberdade deve ser
aceite e respeitada.
Ainda se
confunde orientação sexual e identidade de género?
A orientação
sexual refere-se à atracção, desejo e afetos, independentemente da identidade
de género. Esta descreve a forma como cada pessoa se identifica: masculino,
feminino, ambos, ou nem uma coisa nem outra. O género não é orientação sexual,
descreve expectativas e papéis socialmente atribuídos à pessoa. É esperado, por
exemplo, que as mulheres biológicas tenham menos força física que os homens
biológicos. São ideias ancoradas em estereótipos, sem sustentação sólida.
Se
combinarmos as duas variáveis vamos ter muitos desfechos possíveis. É um
problema?
Tudo isto se
vai complexificar. Basta pensarmos que há pessoas que se definem como
assexuais. Ou intersexo. São situações de grande vulnerabilidade para as
crianças e famílias, que não sabem como lidar com isso. Há uma expectativa
cultural, e médica também, no sentido de pressionar para uma decisão, sobre se
a criança será construída como menino ou menina. O entendimento, a nível
internacional, é que essa decisão não deve ser tomada, antes deixada para mais
tarde, quando a pessoa já tiver uma noção sobre si. E poupá-la a situações de
grande mal-estar, resultantes de intervenções não autorizadas sobre o seu
corpo. Em Portugal, este assunto ainda é pouco discutido.
E qual seria
o nome próprio? Em Portugal não temos praticamente nomes neutros.
Temos leis
muito estritas. Elas determinam que o nome não pode suscitar dúvidas em termos
de género. Depois há a questão da língua: a inglesa presta-se mais essa
neutralidade, mas a portuguesa é muito pouco inclusiva. Há um pensamento
binário na língua, na liberdade de dar um nome a uma criança e no regime
dominante de género, que se exerce com a cumplicidade das autoridades médicas,
entre outras instituições.
Como se muda
esse cenário?
Começando
por respeitar a dignidade humana: reportarmo-nos às pessoas pela forma como
elas desejam ser designadas, sem entrar em juízos de valor. E assumir que a
diversidade é uma mais-valia, um recurso que deve ser protegido, mais do que
tolerado.
Há quem veja
na proposta do FB uma estratégica dirigida aos jovens que, segundo um estudo, estariam
a preterir esta rede em favor de outras. Quer comentar?
Esta é uma
iniciativa meritória, sobretudo por permitir uma reflexão sobre algo que nunca
é questionado. Basta pensar nos formulários preenchidos nas finanças, num
consultório médico, que só têm duas opções e nem contemplam a possibilidade de
«outros» [géneros]. À boleia do FB, há toda uma perplexidade que emerge: o que
antes era considerado uma disforia de género, fica agora em pé de igualdade com
outras categorias. O patamar que as torna equiparáveis é a auto identidade e
isso tem um poder tremendo. Deixa de haver as legítimas e as outras.
Simbolicamente, é um bom passo.
* coordenadora do projeto INTIMATE— Citizenship, Care and Choice: The
Micropolitics of Intimacy in Southern Europe
Entrevista publicada na Visão online
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