Annais Nin ficou célebre por estar à frente do seu tempo. Mais do que o estilo inovador da sua escrita erótica, ou a intensidade que acompanhou sempre a sua vida amorosa, no meio literário parisiense (ilustrada na obra, Henri, June and Me, adaptada ao cinema), cativam-me as suas reflexões, o que ela filtrava das experiências quotidianas. Os dias contados à luz da qualidade (e riqueza) singular dessas experiências. A sua marca de água reside na espontaneidade, na intenção e nos afetos.
Nessa altura, ainda não existia a neurociência. A psicanálise sim, e foi um veiculo precioso, afirmou ela, mais tarde, para o seu desenvolvimento pessoal e, consequentemente, para a criatividade e originalidade da sua escrita.
De Freud até hoje, algumas coisas mudaram. O foco das investigações na área da psicologia e outras ciências deslocou-se do Inconsciente - que se enraizou e vulgarizou no senso comum - para a Consciência. Para o que se passa num momento presente (em '3D' ou '4G', poder-se-ia dizer, na gíria tecnológica). É um território com várias dimensões ou camadas (e em combinações neuronais quase infinitas), não confinada ao plano intrapsíquico.
O passado, no sentido psicanalítico, atualiza-se no presente. E o que se passa no momento presente? Quanto dura um momento de experiência significativa, vivido com atenção focada e capaz de mudar o rumo de uma vida em escassos segundos? O que faz acontecer essas «explosões» químicas nos circuitos cerebrais? Como se processam os movimentos das interações (com um outro ou durante uma atividade)? Que leitura se vai fazendo delas, em tempo real?
A investigação neste domínio (Experience Flutuaction Model) sugere que existe um estado de consciência descrito por experiência ótima (ou de 'fluxo'), caracterizado pela sintonia entre desejos, sentimentos e ação, na relação com o mundo. Esse estado de consciência (gratificante e pleno) produz elevados níveis de bem-estar psicológico (Nakamura & Csikszentmihalyi, 2002) e pode ser alcançado pelo envolvimento e concentração no que se está a viver enquanto se interage, num dado momento e circunstância.
No meio de tantos gestos e rotinas, aparentemente insignificantes, faz-se um 'click'. Num instante, tudo muda. O significado da experiência subjetiva que emerge nos contextos naturais de vida é que vai determinar os pontos de viragem e transformação. As pesquisas centram-se agora nas flutuações da qualidade das experiências vividas, na tomada de consciência do que nos faz sentir vivos (presentes/conscientes) na relação com o mundo. Entrar em 'fluxo' e promovê-lo, numa perspetiva salutogénica.
mindfulyou.com
Um novo paradigma começa a ganhar forma (ou massa crítica): se é em (na) relação que a «doença» (ou o sintoma) se forja, é em (na) relação que ela se pode «curar». Com outros protagonistas, ou em contextos relacionais mais user friendly (como acontece, por exemplo, num processo psicoterapêutico, mas também noutras formas de envolvimento significativas, onde têm lugar todas as formas de arte e de encontro, onde a empatia e o sentido de si têm lugar para existir).
As plataformas tecnológicas parecem ter um papel decisivo neste processo, por serem pontos de partida e criarem oportunidades (mesmo que temporárias ou experimentais) de contacto, descoberta e, eventualmente, de encontro, promotor de mudança (pela qualidade das experiências ótimas, que promovem «insight» e valem por si).
Annais iria gostar de saber.
Psicologia Quotidiana
No Consultório Social da Visão Solidária, tem um espaço para colocar as suas perguntas (visaosolidaria@impresa.pt) e acompanhar as respostas.