domingo, 30 de novembro de 2008

«Hoje deixei-te»


















Levantou-se, decidida, pegou nas malas que estavam escondidas no armário e deixou-as junto à porta do seu quarto. Saiu sem fazer barulho. Aquela tinha sido mesmo o encontro da despedida. Ele não o sabia. Ela sim. Na cave dos amores proibidos, as senhoras têm a última palavra. O ponto final é delas.

Maria sempre se viu como uma mulher «ponto e vírgula»; entrava em greve de sms e bloqueava o número do amante sempre que ele a desapontava; mas depois de sarados danos e amargos de boca, dava por finda a fase higiénica das «reticências». Saía do modo em stand by e voltava a entrar em cena, pronta a retomar essa espécie de jogo a que uns chamam vício e outros destino.

As rotinas de outros dias voltavam em força: a sala do escritório a horas tardias, o parque de estacionamento, a casa dele quando a legítima não estava, o motel à hora de almoço. Outras vezes, quando a reserva de tolerância chegava ao fim, prolongava os períodos de carência e desforrava-se nos cigarros, no trabalho, nas idas ao ginásio e, quando o orçamento permitia, a uma gratificante massagem. E proibia-se de ver a série Anatomia de Grey.

A bola ficava então do lado dele. Cada reconciliação funcionava como uma espécie de upgrade, onde o refinamento era norma: um fim-de-semana a dois, durante um congresso noutra cidade; um anel, um relógio; a mala de marca certa; o perfume das ocasiões especiais. Ela retribuiu. Acolheu-o finalmente na sua casa, entregava-lhe com agrado os comandos dos equipamentos hi-tech enquanto estavam no sofá. Enquanto mulher «ponto e vírgula», deleitava-se com a intensidade - e a ilusão de romance com futuro - destes vaivéns incertos.

Nada lhe parecia mais interessante que o sabor da impossibilidade que a desafiava a estar viva e a testar as suas capacidades de sedução e entrega ao limite. «Amo-te assim, furiosa e submissa, porque nunca serás meu». A cada tentativa de despedida, de derradeiro adeus, conspirava «Sim, vou deixar-te, mas não hoje».
Até que um dia fizeram amor em estado líquido, atingiram o nirvana, esse estado de graça que liberta de todos os desejos e da existência individual. Por alguns instantes, ao menos. Uma petite mort que ela não apagaria da memória. Momentos depois, acordou com ele a sonhar em voz alta. Passou suavemente a mão pelo peito do homem satisfeito.

Ele suspirou, e da sua boca saiu o nome da companheira oficial. Nesse instante, levantou-se, decidida.
Pegou no telemóvel do amante, foi à lista de contactos e apagou o nome «Manuel», que correspondia a si própria. E prosseguiu, tal como tinha planeado, para quando o vida lhe desse um sinal de que tinha chegado a hora. Colocou os dois móveis em modo silencioso e mudou a configuração da identidade do seu para «desconhecido». Enviou-lhe uma mensagem. A última palavra.

Pegou nas malas, feitas há três dias e criteriosamente escondidas no seu armário. Abriu uma delas, inseriu os pertences pessoais dele que ainda faltavam: a máquina de barbear, o perfume, o relógio, a escova de dentes. Puxou o fecho. Com uma ponta de vingança e súbitas palpitações de prazer. Deixou tudo à entrada da porta e sentiu-se senhora do seu destino. Saiu sem fazer barulho. Não sem antes levar consigo a cópia da chave do apartamento, que ele guardava na carteira. «Fui», disse.

Meia idade


«A situação é desesperada, mas não é grave»

«Eu só quero ser feliz». A voz ecoa vezes sem conta no canto da mente, mas os esforços dos neurónios parecem vãos. O pior, suspeita-se, ainda está para vir. Se acaba de entrar no aventureiro grupo dos «entas», prepare-se para viver os melhores anos da sua vida… depois de sobreviver às «passinhas do Algarve» (os algarvios que me desculpem!).
Diz-se, e bem, que a vida começa aos quarenta. Mas ninguém avisou que era fácil. Um estudo publicado no jornal Social Science & Medicine, envolvendo dois milhões de pessoas em 80 países demonstrou que a felicidade é um estado interno que evolui ao longo da vida e assume a forma de U.
O que a equipa de Andrew Oswald descobriu dá razão à sabedoria popular: a vida começa aos quarenta, mas só se nota depois de superar a chamada «crise da meia-idade». Na prática, os 44 anos são o momento em que se atinge o pico da infelicidade, sendo frequentes os estados depressivos.
«Os resultados mostraram variações significativas entre os sexos. No caso das mulheres, o estado crítico era mais provável aos 40, os homens sentiam-se frequentemente miseráveis aos 50.
Andrew Oswald explica porque é que a curva volta a subir a partir dessa altura: «No final dos 30 descobre-se que algumas aspirações vão ficando pelo caminho e a desilusão instala-se; depois sai-se dessa fase ‘em baixa’ e é sempre a somar pontos».
O investigador afirmou ao jornal britânico The Guardian que «aos 70 anos, se a condição física estiver em forma, é possível ser tão feliz como aos 20». A explicação parece simples: os níveis de satisfação aumentam e compensam os de depressão, diminuindo o risco de esta fazer estragos.
Conclusão: vai-se a juventude (e as crenças irrealistas), vem a sabedoria (as lições aprendidas de acordo com o freudiano Princípio da Realidade).
Bem-vindo pois, à Idade da Razão. O bilhete é o reconhecimento (em vez da negação) das suas limitações.
Parece simples, não é? Se está no meio da viagem e sente que carrega o mundo às costas, não desespere. A vida é para maratonistas como você, que continuam em frente, respeitando o seu ritmo e sem fazer cara feia a solavancos, pedras e buracos do caminho.
Vista assim, a questão da felicidade em forma de U, prenuncia um smiley em potência. Feitas as contas, «o último a rir é sempre quem ri melhor». Ou fá-lo com outro gosto.